Observador Isento (Unbiased Observer)

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Friday, November 14, 2008

Senhorita de idade

Luiz A. Góes

De repente nossa casa começou a ficar cercada por prédios altos, com centenas de janelas olhando para dentro de nosso quintal. Nossa privacidade tinha se acabado, e comecei a pensar em me juntar à onda, desistindo de morar em casa na medida em que conseguisse construir um prédio de apartamentos no local, dos quais ficaria com um para minha moradia. Mas para isso precisaria fazer algum tipo de sociedade com um de meus vizinhos, porque tinha um bom terreno, mas com largura de frente insuficiente para a construção de um prédio de bom gabarito.
Um de meus vizinhos tinha, como eu, construído piscina e tudo o mais em seu quintal, e não queria saber de falar no assunto: sempre que eu tentava abordar a questão êle se antecipava dizendo que jamais se mudaria dali, agora que seus filhos estavam casados e os netos, que estavam chegando todos os anos, curtiam bastante aquele quintal todos os finais de semana, junto aos avós: manter a família em torno da gente sempre foi o grande sonho de quem envelhece.
No outro lado havia uma espécie de sobrado do tipo conhecido na cidade pela expressão "apartamento tipo casa", porque se tratava de duas residências, uma no andar térreo e outra no andar superior. Estavam alugadas e procurei saber quem era o proprietário: fiquei sabendo que era uma senhora espanhola já idosa que residia em bairro próximo ao centro da cidade. Fui procurá-la e me espantei quando vi que era pessoa com mais de noventa anos de idade, a qual declarou que tinha comprado aquele prédio para dar um apartamento para cada um de seus dois filhos, os quais já usufruiam da renda que os aluguéis proporcionavam. Como ela disse que os filhos é que resolveriam se gostariam ou não de participar de um empreendimento do tipo que eu propunha, fui procurá-los para conversar.
Um deles era locutor de uma rádio bastante antiga, tipo bem falante, mas que vim a descobrir ser manobrado pela mulher, pessoa gananciosa e desagradável no trato: não devia ser fácil viver numa casa tendo-a como proprietária, porque depois observei que frequentemente visitava a sua propriedade e tinha longas conversas com os inquilinos. Foi extremamente difícil lidar com ela, e acabei desistindo, inclusive porque nesse ínterim eu tinha conseguido contactar também o cunhado dela, irmão mais velho do locutor de rádio: era funcionário antigo de importante empresa e se encaminhava para aposentar-se.
Esse irmão mais velho era solteiro e residia em endereço que não revelava, o que dificultava os contactos e me obrigava a recorrer ao irmão locutor para conversar com êle. Por isso, a cunhada gananciosa patrulhava todas as nossas conversas e impedia que o solteirão tomasse posições independentes. Na última conversa que tivemos, e depois de explicar com bastante detalhe o que eu tinha em mente como empreendimento, mostrando as vantagens econômicas e financeiras do mesmo, a tal mulher impediu que o marido e o cunhado falassem, dizendo em resumo que não considerava aquilo um bom negócio e que preferia deixar tudo como estava. O cunhado solteirão, que pouco falava, soltou uma frase bastante surpreendente e, para mim, bastante incompreensível: "É melhor deixar tudo para os herdeiros…"
Que eu soubesse, êle não tinha descendentes, de modo que os herdeiros a que aludia só podiam ser o irmão e sua mulher, e mais tarde, quem sabe, os dois filhos do casal. Olhei para a mulher, e os olhos dela brilhavam a ponto de soltar faíscas: passaram-me rapidamente várias coisas pela cabeça e fiquei até meio apreensivo com a situação, mas resolvi encerrar o assunto porque vi que nada conseguiria.
Mas as coisas que se deseja deixar como estão sempre acabam se modificando contra a nossa vontade: o destino, ou Deus, parecem ter planos diferentes dos da gente, de modo que o que acaba acontecendo é aquilo que menos se espera. O vizinho que dizia que jamais se mudaria dali, repentinamente vendeu sua casa e se mudou para um apartamento, porque tinha sido vítima de um assalto que traumatizou bastante a êle e sua família. Fez tudo em segredo, sem falar comigo, e só assim vim a descobrir que tinha havido o assalto. Vendeu barato, e para meu azar o comprador era outro indivíduo desagradável, ganancioso e agressivo, que começou por colocar uma cêrca elétrica do tipo que se usa para gado em fazendas em toda a volta da casa sôbre os muros. Tivemos que fazer pressão sôbre êle para remover aquela cêrca elétrica, por ser perigosa e até mesmo ilegal (as cêrcas elétricas podem ser usadas em fazendas como cêrcas internas, mas não divisórias). Infelizmente com êle não haveria como conversar sôbre negócios.
Mais ou menos nessa época, entretanto, apareceu lá em casa um senhor português com sotaque bastante carregado, o qual se apresentou como corretor de imóveis e, surpreendentemente, aludiu à possibilidade de negociarmos os apartamentos tipo casa ao lado, já que êle tinha sido informado de meu interêsse naquele negócio fazia algum tempo. Talvez o recente término da construção de um grande prédio de apartamentos a menos de cinco metros do lado oposto dos apartamentos tipo casa tenha finalmente convencido os proprietários. Qualquer que fosse a razão, entretanto, indaguei a respeito dos proprietários, e o tal corretor disse que um deles, o solteirão, estava bastante doente. Mas não explicou exatamente porquê os proprietários estariam interessados no projeto, depois de terem simplesmente se negado a contemplá-lo cêrca de um ano antes.
Comentei que o tal solteirão devia estar vivendo uma vida difícil, sem ter uma família para cuidar dele, ao que o tal corretor português comentou: "Há lá uma senhorita de idade que cuida de fazer a comida e lavar a roupa dele…"
E o assunto ficou nesse pé, porque os dois sujeitos queriam vender e não participar de um empreendimento, - e eu não dispunha de dinheiro para comprar. Mas a visita do português me fez pensar, e logo tive a idéia de arranjar um sócio, na figura do dono de uma empresa construtora, o qual, depois de firmar um contrato comigo, procurou os dois irmãos e deles comprou o imóvel para viabilizar a construção do prédio. Fatos supervenientes, entretanto, impediram que o projeto se concretizasse, além do fato de que me apareceu uma oportunidade profissional que implicava em mudar-me para cidade longínqua, o que me levaria a simplesmente vender o meu imóvel, como acabei fazendo, por não mais poder cuidar do assunto. O meu sócio, diante disso, acabou revendendo os dois apartamentos tipo casa a terceiros, e não se falou mais no assunto.
Enquanto essas coisas aconteciam, de uma hora para outra correu na cidade a notícia de que o tal solteirão tinha morrido, e surgiu um zum-zum a respeito da herança que deixava, porque era, como o irmão, proprietário de muitos imóveis. O irmão e a cunhada tornaram-se, de repente, figuras faladas: parece que muita gente sabia da situação, da ambição, da ganância, e os comentários se sucediam.
Uma duas semanas mais tarde, entretanto, surgiu uma bomba: a tal "senhorita de idade" apareceu com um advogado exibindo dois documentos desconcertantes: uma certidão de casamento datada de um mês antes do falecimento do solteirão, com o qual teria vivido por vários anos fazendo-se passar, aos olhos de todos, por uma simples empregada doméstica. E de um testamento mediante o qual o marido, que já era sexagenário, a fez sua herdeira universal. Pareceu que o testamento datava de bem antes do casamento.
Como disse, o que menos se espera é o que geralmente acontece: ficamos finalmente sabendo a quê herdeiros o solteirão esquisito aludia quando disse que era melhor deixar tudo para os herdeiros. E ninguém podia ter imaginado que quem levaria a melhor naquela contenda, ironicamente, seria a "senhorita de idade".

1 Comments:

  • At Fri Nov 14, 04:34:00 PM EST, Anonymous Anonymous said…

    Volta e meia penso nisso,não adianta mesmo planejar a vida é sempre diferente,melhor ou pior do que imaginamos,mas nunca igual.

     

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