Observador Isento (Unbiased Observer)

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Tuesday, November 25, 2008

Nosso começo e nosso fim

Luiz A. Góes

Parece meio incrível que certas coisas fundamentais para cada um de nós ainda não tenham sido suficientemente consensadas a ponto de se tornarem leis pétreas, incontestáveis, aceitas por todos.
Estão nessa categoria as definições do início e do fim da vida de um ser humano. Discute-se muito quanto ao início, e muito pouco quanto ao fim, mas ambos merecem igual atenção, porque lidam com o que há de mais fundamental para qualquer pessoa: a vida em si mesma.
É claro que não me sinto com autoridade para fazer definições de qualquer tipo a respeito dessas questões, mas como interessado no assunto, - como acredito que todos somos, - permito-me fazer algumas reflexões visando contribuir para provocar uma discussão tão isenta quanto possível do assunto.
Embora pareça não haver mais qualquer dúvida de que quando a atividade cerebral cessa o ser humano deixa de existir, ainda é a assinatura do médico no atestado de óbito, e a causa por êle apontada como origem da morte, o que prevalece oficialmente. Assim, são muitos os casos de pessoas que, tendo tido morte cerebral, são mantidas "vivas" por meios artificiais, sejam aparelhos ou qualquer outra forma, com os corações batendo e o sangue circulando nas veias, mas em estado vegetativo. Essa prática ocorre frequentemente por conveniências sociais, como por exemplo dar tempo para que parentes e amigos cheguem para assistir ao sepultamente. Mas também dá margem a outras coisas mais discutíveis, como interêsses econômicos ou financeiros dos herdeiros ou disputas entre êles. Os jornais têm se ocupado desse tipo de assunto com certa frequência, e muitos desses casos se tornam notórios por motivos diversos, havendo inclusive a frequente apelação a motivos religiosos para justificar a prática.
Mas parecem ser bem poucos esses casos em que surgem disputas quanto ao fim da vida humana, de modo que não chegam a ser preocupantes as discussões e até embates legais que possam causar. Melhor dizendo: não chegavam até há algum tempo, porque os programas de doação de órgãos, que vão se tornando cada vez mais generalizados em quase todo o mundo, estão trazendo a discussão da definição do final da vida humana de volta à discussão, e agora com implicações demasiado sérias para serem ignoradas.
Com o progresso da medicina, os transplantes de órgãos passaram a constituir prática destinada a prolongar a vida de muitas pessoas, ou de melhorar a qualidade de vida de muitas pessoas. De há muito se conhece, por exemplo, os benefícios dos transplantes de córnea para melhorar ou salvar a visão de pessoas com problemas visuais diversos. Essas córneas são invariavelmente provenientes de cadáveres, muito embora já existam, tanto quanto tenho ouvido falar, córneas artificiais aplicáveis em alguns casos.
Há algumas décadas o mundo foi surpreendido pelo primeiro transplante de coração, e logo depois esses transplantes foram se multiplicando e acabaram se tornando uma espécie de banalidade, tantos são os que se fazem atualmente. Não há qualquer dúvida de que ganhar um novo coração significa, de certa forma, nascer novamente para quem só podia esperar o fim quando essa peça vital do organismo resolve parar de trabalhar. E esses corações têm que provir de cadáveres, da mesma forma que qualquer outro órgão ou parte do corpo humano que seja transplantado de um indivíduo a outro.
Os transplantes se tornaram tão vitoriosos que atualmente se transplanta quase tudo. Talvez o cérebro seja o único órgão a respeito do qual ainda não se conseguiu qualquer sucesso nesse particular, mas quase se pode dizer que se uma pessoa tiver um cérebro em boas condições, pode se candidatar a receber um corpo completo de outro indivíduo para substituir o seu que esteja demasiado gasto ou seriamente comprometido.
O grande problema que se apresenta, no caso dos transplantes, é que para que alguém possa receber um órgão transplantado, é preciso que outro indivíduo tenha de alguma forma renunciado a êle. É possível a um indivíduo vivo doar um de seus rins para outra pessoa, porque se pode viver apenas com um rim, mas quanto aos demais órgãos a doação invariavelmente ocorre com o fim da vida do doador. E essa operação de transplantar órgãos de um corpo para outro precisa ser levada a efeito com considerável rapidez, a fim de evitar que o órgão a transplantar sofra qualquer deterioração no corpo do doador falecido.
Não é preciso pensar muito para se perceber a gravidade do problema: se se espera muito para assegurar que a morte do doador realmente ocorreu, perde-se o órgão a transplantar, e se se tem muita pressa corre-se o risco de extrair o ógão de um doador que poderia eventualmente ainda estar vivo. Ouve-se falar, por exemplo, de numerosos casos em que pessoas esperam interminavelmente pela oportunidade de receberem um órgão doado que seja compatível com suas características sanguíneas e tudo o mais, e de vez em quando se ouvem notícias de pessoas importantes que precisavam urgentemente de um transplante múltiplo de órgãos aquinhoadas com o "feliz" surgimento imediato de um doador em ótimas condições e com todas as características desejadas.
É evidente o perigo que isso pode representar para o indivíduo, tenha êle se declarado doador de órgãos ou parte de seu corpo quando em vida, ou tenham seus familiares a disposição de fazê-lo doador caso venha a falecer, - e até mesmo quando inexista qualquer uma dessas intenções. Quer dizer: uma definição legal precisa, indiscutível, insofismável, do fim da vida do ser humano, definição essa pela qual todos sem exceção tenham que se pautar, é uma necessidade absoluta.
Quanto ao início da vida, o problema apresenta dificuldades ainda maióres. Sabe-se que em algum estágio de praticamente todas as civilizações avançadas conhecidas tanto o aborto quanto o infanticídio foram amplamente praticados, e o primeiro continua a ser praticado com muita frequência, independentemente de ser prática legalmente permitida ou não, em todo o mundo. Parece se tratar de uma dessas coisas que desafiam as leis, admitindo como único regulador o conjunto de convicções íntimas de cada indivíduo a cada momento, podendo, inclusive, variar grandemente para o mesmo indivíduo ao longo de sua vida e conforme as circunstâncias de cada hora.
Aqui as dificuldades se relacionam, tanto quanto entendo, com dois aspectos que se entrelaçam, ambos com carências importantes. O primeiro deles, é o conjunto das convicções religiosas e filosóficas de cada indivíduo, convicções essas que dificilmente, - eu diria mesmo que "impossivelmente", - são idênticas para todos os indivíduos de cada sociedade ou de cada país, quê dirá para todos os indivíduos do mundo.
O segundo aspecto refere-se à falta de uma definição científica quanto ao início da vida que seja aceita por todos sem qualquer dúvida e não passível de discussão, a ponto de poder ser estatuída legalmente como o marco inicial da existência de um ser humano.
De fato, as grandes religiões (pelo menos as que conheço) e a esmagadora maioria dos indivíduos com convicções religiosas do tipo fundamentalista tendem a declarar que um óvulo se torna um ser humano tão logo tenha sido penetrado por um espermatozóide, tanto quando isso se realiza dentro do organismo da mãe quanto quando conduzido externamente, a chamada fertilização in vitro.
Parece, pelo que se lê frequentemente sôbre o assunto, que a maiór parte, ou pelo menos uma grande parte, dos óvulos fertilizados in vitro, por exemplo, são descartados sem chegarem a ser implantados num útero feminino. Considerar esses óvulos fertilizados como seres humanos, assim, pode ser um excesso de zêlo ou exagero de interpretação, posto que de qualquer forma não terão, se não chegarem a ser implantados nun útero, nenhuma possibilidade de virem a se desenvolver e tornar-se fetos.
Mas mesmo quanto aos óvulos fertilizados que se encontrem dentro do útero, seja por ato sexual natural ou por inseminação artificial, apresenta-se um problema crucial para a definição do início da vida humana, porque há a necessidade de o óvulo fertilizado conseguir agarrar-se à parede do útero dentro de alguns dias depois da fertilização, - li em algum lugar que isso ocorre lá pelo nono dia depois da fertilização, - e aqueles óvulos feritilizados que, mesmo dentro do útero, não consigam realizar essa "proeza", acabam sendo eliminados naturalmente pelo organismo receptor. Quer dizer: mais essa "batalha" precisa ser vencida para que um óvulo fertilizado tenha alguma chance de vir a se desenvolver e tornar-se um feto.
Depois disso, há um período em que, embora se verifique crescimento, ainda não se apresentam sinais de uma vida separada da da mãe: o coração, por exemplo, só começa a bater depois de algumas semanas, e só depois de um par de meses é que começa a se verificar alguma atividade cerebral.
Assim como o fim da vida humana parece ser melhor definido como o momento em que cessa a atividade cerebral, o início da atividade cerebral talvez seja o critério mais adequado para se definir como o do início da existência de um ser humano como tal. Mas os eventos anteriores, - agarramento à parede do útero, e início dos batimentos cardíacos, também poderiam ser levados em consideração de alguma forma, para estabelecimento de uma definição legal clara do início da existência de um ser humano.
É claro que nenhuma definição científica ou legal resolverá a questão para quem adote acima de tudo a definição ditada por convicções de tipo religioso ou mesmo de tipo apenas filosófico, mas pelo menos terá a virtude de colocar alguma órdem na balbúrdia existente atualmente, em que as pessoas tendem a como que se dividirem em duas "religiões" face ao problema do aborto: aquelas que são totalmente contra e aquelas que são totalmente a favor. Trata-se de duas posições extremadas, sem qualquer dúvida, bastando mencionar, por exemplo, os problemas apresentados pelos casos de gravidez resultante de estupro, e os de feto anencefálico, - ambos já contando com autorização legal para a prática do aborto a qualquer tempo, - para se concluir que existe a necessidade de se estabelecer regras precisas para disciplinar a questão.
Mas, evidentemente, se o aborto tem sido praticado de maneira mais ou menos ampla, como todos sabem, mesmo sem amparo legal, existe uma outra ódem de problemas com êle relacionada que precisa ser resolvida ou desmistificada. Trata-se dos problemas decorrentes da prática do abôrto por pessoas não medicamente habilitadas para fazê-lo. Esses problemas afetam a população de baixa renda, porque geralmente as pessoas que dispõem de recursos econômicos suficientes sempre conseguem profissionais que efetuam a intervenção segundo práticas médicas seguras, sem colocar em risco a saúde ou mesmo a vida da mulher.
O reconhecimento de que a população de baixa renda precisa poder ser assistida pela rede de saúde da previdência social a fim de livrar-se dos riscos que o aborto praticado por amadores, - as famosas "aborteiras", entre outros, - é uma necessidade. Quer dizer: mesmo que venha a ser estabelecido um marco legal para o início da vida humana, há a necessidade de se descriminalizar o aborto para que as mulheres pobres possam ser assistidas pela rede hospitalar sem maióres problemas.
Atualmente, segundo tenho lido, o fato de que nos casos de estupro o aborto é permitido abriu uma brecha que representa uma meia solução para o problema, já que foi admitido que o simples registro de uma ocorrência policial efetuada pela mulher informando ter sido estuprada está sendo aceito como suficiente para amparar a prática do aborto pela rede pública. Não sei como tem funcionado na prática, mas de qualquer forma se trata de uma situação de "meia verdade", já que a esmagadora maioria desses casos não são, como se pode facilmente imaginar, de estupro, e sim de falta de conhecimento e meios, seja quanto a métodos e práticas anti-concepcionais, ou quanto a meios para alimentar um número cada vez maiór de bocas.
Esse é o resumo do que vejo e penso em relação ao nosso começo e nosso fim como seres humanos. Gostaria de saber as opiniões daqueles que me dêm a honra de ler êste ensaio.

1 Comments:

  • At Thu Nov 27, 06:26:00 AM EST, Anonymous Anonymous said…

    Luiz, temas complexos estes, e cujos desdobramentos já são outros temas em si...
    O decidir -se o começo, mais do que o fim, é uma questão de valores e já no seu primeiro sopro deve ser respeitada. Por isso defendo a necessidade de se incutir mais responsabilidade na moçada em geral; eles fazem vida e a destroem como a mesma indiferença porca de quem cospe um chiclete na calçada .
    O fim da vida, como determinar-se, vc deixou bem claro o problema, pois aí já envolve mais do que um personagem, são 2 vidas, uma que se esvai , mas para doar vida a outro. O menos mal é deixar o critério para os médicos? Mas não serão eles corrompíveis? Quem sabe a presença de um "mediador" que atestasse a lisura de todo o processo?
    Não sei...com tudo de bom que a modernidade nos oferece, com todo o beneficio que os tranplantes trazem para milhares de familias, penso que o velho método de se morrer simplesmente, rodeado pela familia, na sua própria cama, era um bom jeito de se morrer, se é que é possivel ser bom morrer.

     

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