Observador Isento (Unbiased Observer)

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Saturday, March 14, 2009

Um falso dilema

Luiz A. Góes

O bicentenário do nascimento de Charles Darwin, célebre autor do polêmico livro "A Origem das Espécies" e vários outros, motivou vários escritores, jornalistas, professores e outros intelectuais a se manifestarem mais uma vez a respeito das idéias desse famoso naturalista.
Lendo os diversos artigos publicados na imprensa, constatei que em princípio ninguém consegue ficar neutro em relação a Darwin: uns se colocam francamente a favor, enquanto outros se manifestam totalmente contrários aos seus ensinamentos. Muito poucos mostraram algum equilíbrio, e tudo porque Darwin, como disse o professor Francisco Borba Ribeiro Neto(*) em seu artigo "Darwin e a Filosofia", "mostrou os limites de uma interpretação literal da Bíblia … e de um ‘deus das lacunas’, invocado para explicar, de forma quase mágica, as lacunas em nosso conhecimento sôbre a realidade".
O que se acende nesse momento do bicentenário de Darwin é o velho antagonismo entre os criacionistas e os evolucionistas, aqueles acreditando literalmente no relato bíblico da criação do homem por Deus, e êstes convictos de que a espécie humana, como as demais espécies animais, é o resultado de um processo evolutivo ao longo de milhões de anos a partir de alguma forma primitiva de vida.
Em nome dessa diferença de modos de ver, Darwin acabou recebendo, em seu bicentenário, homenagens e também injúrias. Houve quem o chamasse de plagiador, copiando idéias de pensadores mais antigos, de ter idéias escorregadias, de ter sido cara-de-pau, de ter defendido idéias genocidas, e por aí afora.
Em realidade, no passado numerosos homens de ciência foram sacrificados ou silenciados por motivos semelhantes, quais sejam o de divulgarem idéias conflitantes com interpretações literais da Bíblia, idéias essas hoje amplamente aceitas e não mais sujeitas a qualquer discussão. Basta mencionar como exemplo o caso de Galileu para se ter uma idéia de como a visão das coisas muda à medida que a ciência vai ampliando os horizontes do conhecimento humano. Estão na mesma categoria muitos fenômenos outrora tidos como sobrenaturais, aí incluidos muitos classificados como milagres, que o conhecimento científico aos poucos vai mostrando tratar-se de coisas naturais perfeitamente explicáveis. Povos antigos consideravam sobrenaturais, por exemplo, o trovão, o ráio, e adoravam os seres moventes do firmamento, que consideravam deuses, em contraposição aos fixos, que são as estrelas. Hoje sabemos que em realidade todos esses corpos se movem, mas na época, incapazes de percebê-lo, os astrólogos, que eram os astrônomos daquele tempo, estabeleceram a suposta distinção da qual se derivou a crença naqueles deuses.
Poderíamos ficar citando exemplos infindavelmente, porque são muito numerosos e se espalham por praticamente todos os ramos do conhecimento humano, mas acredito que os citados bastam para se ver que à medida que a ciência vai removendo os véus que impedem a visão clara da realidade objetiva, a maneira de ver as coisas precisa ir se adaptando correspondentemente.
Darwin sabia que suas idéias evolucionistas iriam causar polêmicas e problemas, e por isso, homem religioso que era, retardou a publicação de seu famoso livro por cêrca de vinte anos, durante os quais apenas discutiu o assunto com alguns poucos cientistas que como êle se interessavam pelas evidências de que todas as espécies existentes tinham que ter resultado de processos evolutivos. Quando finalmente publicou o livro, viu-se como que marginalizado de suas atividades religiosas e execrado como herege, embora não tenha sofrido as punições e restrições que Galileu e outros tinham sofrido em séculos anteriores.
Tenho por princípio não discutir religião, porque qualquer religião baseia-se necessariamente em fé, e fé é coisa de caráter subjetivo e puramente emocional, não admitindo discussão ou o questionamento contraditório que é a base do desenvolvimento científico. Respeito todas as religiões bem intencionadas, mas acho que tenho que discordar de todas elas no único aspectos em que são totalmente semelhantes entre si: cada religião acha que é a única certa e que todas as outras são erradas. Não acredito que alguém possa ter certeza absoluta de nada, e que se existe um Deus, sua existência não depende dessas divergências de visão dos homens, caso contrário não seria Deus.
Por isso acho que a interpretação literal da Bíblia ou de qualquer outro texto religioso precisa ser levada a efeito considerando o sentido metafórico desses textos, mesmo porque nenhum deles conta com corroboração histórica do ponto de vista científico para os acontecimentos que tenham tido lugar há mais de uns três mil anos. Achar, por exemplo, que realmente existiram os dez patriarcas mencionados na Bíblia que teriam vivido vidas longas de muitos séculos, como Matusalém, que teria vivido 900 anos, e Noé, que teria passado dos 1000 anos, foge a qualquer lógica, mesmo porque depois da fase dos patriarcas a Bíblia passa a ser mais parcimoniosa, atribuindo a Abraão e a Moisés, por exemplo, cêrca de 150 anos de vida, e mais adiante ainda menos aos personagens subsequentes. Parece-me claro que se trata de metáforas.
Assim, a leitura que faço da criação do homem por Deus como descrito na Bíblia é mais ou menos a seguinte: a Bíblia diz que Deus criou o homem moldando-o à sua semelhança com o barro da terra, e que depois soprou sôbre êle para dar-lhe vida.
Como não havia ninguém que pudesse testemunhar esse evento a não ser o próprio homem, entendo que a menção ao uso do barro da terra como matéria-prima significa que o homem é produto da terra, e a imagem e semelhança de Deus mencionada na Bíblia é apenas a única imagem que homens poderiam atribuir a Deus, e não o inverso, porque de novo ninguém que esteja vivo realmente sabe qual é a verdadeira imagem de Deus.
Como exatamente o homem é proveniente da terra é outro ponto que não temos como imaginar: o instante mencionado na Bíblia pode muito bem ter sido o processo evolutivo de milhões de anos, que para Deus, ou para a duração do universo, não representa nada, embora para cada um de nós individualmente seja um tempo muito longo.
O que distingue o homem dos demais animais é essencialmente o fato de que o homem desenvolveu a capacidade de transmitir idéias complexas de indivíduo para indivíduo, a capacidade da linguagem, o que o habilitou a desenvolver tudo o mais e o tornou o que chamamos de homem civilizado. O sopro divino que transformou o homem proveniente da terra no homem idelizada na Bíblia pode bem ter sido o desenvolvimento da capacidade da linguagem.
A fala humana é, evidentemente, mais importante do que a própria forma física dos humanos, e esse sopro divino correspondeu, segundo entendo, à verdadeira criação do homem como ser distinto e acima de todas as demais espécies.
Talvez o dilema entre criacionismo e evolucionismo seja apenas um falso dilema.
(*) Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

1 Comments:

  • At Sat Mar 14, 11:22:00 PM EDT, Anonymous Anonymous said…

    Maravilhoso texto.
    Totalmente pertinente.
    Vemos, que a igreja continua (ainda) usando o seu poder para
    impedir o desenvolvimento científico, citaria aqui o "Uso das células tronco", que não consegue ser feito em decorrência de discussões ideológicas descabíveis.
    Imagino o que Darwin, enfrentou, até por ter a sua família inteira religiosa, inclusive a esposa.
    Parabéns , pelo tema tão bem abordado. Amália. C. W. Grande

     

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