Observador Isento (Unbiased Observer)

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Friday, October 20, 2006

Baixinhos e figurões

Às vezes tenho a impressão de que as coisas acontecem para nos fazer lembrar da vida. Foi o que se passou ontem.
Fui inspecionar uns componentes de máquinas destinados a um cliente, e tive que me acocorar e me espremer para poder vê-los de perto, porque estavam debaixo de uma plataforma situada a no máximo um metro e meio do piso. E isso apesar de o armazém, enorme, estar praticamente vazio.
O local estava cheio de outras peças e partes, de modo que sofri um bocado, tendo que me equilibrar, me esgueirar, me esticar, forçar a vista para ver melhor, até que por fim me dei por satisfeito… Satisfeito? Eu estava, em realidade, me sentindo péssimo, com os joelhos e as costas doendo, suando em bicas, cansado como se tivesse carregado umas duzentas sacas cheias de feijão de sessenta quilos cada uma nas costas. A escassez de lubrificante nas juntas, que os anos vêm gastando, a falta do hábito de exercitar certos músculos há várias décadas, e a falta de uma lanterna para ler com mais facilidade, - quem ia imaginar que precisaria de uma? – entre outras coisas, deixaram-me pregado.
Quando saí daquela arapuca, olhei para o encarregado do serviço naquele local: era um baixinho que entrava naquele "recanto" com a maior facilidade, mal precisava abaixar um pouco a cabeça. Entendi logo porquê colocava as coisas debaixo da plataforma: o armazém ficava parecendo um brinco, nada fora de lugar, tudo limpo. Mesmo porque ninguém iria inspecionar nada naquele canto escuro, qualquer que fosse a bagunça que lá reinasse. Não é por acaso que o chefe daquele baixinho deve gostar dele.
Lembrei-me, por causa do baixinho, de uma série de situações vividas na COSIPA há várias décadas, que não me chamaram tanto a atenção na época mas que agora me voltaram à memória: estávamos nos preparando para iniciar a operação de uma fábrica de refratários que a empresa tinha comprado de um fabricante alemão, coisa modernosa, toda automatizada, capaz de fabricar todos os tijolos necessários para o revestimento de um dos conversores da aciaria num piscar de olhos.
Naquela ocasião estávamos às voltas com um forno rotativo da referida fábrica no qual calcinaríamos a magnesita para fabricar os tijolos, e o diabo do forno nos dava um baile daqueles: não atingia a temperatura necessária, e o material saía mal calcinado e inútil para o fim a que se destinava. Lutamos com aquele problema por vários dias, o pessoal da manutenção examinou cuidadosamente todos os motores, todas as partes móveis, tudo enfim, e gastaram um bocado de óleo de sais de ouro, - como chamávamos uns óleos lubrificantes que custavam os tubos, - para que tudo funcionasse sem qualquer problema, mas nada.
Lá pelo quinto dia de luta, - tínhamos poucos dias para resolver o problema porque o início da operação se avizinhava, - fui almoçar e dei com o Jack no restaurante. O Jack era um sujeito interessante, tipo afável, dono de boa cultura, bom gênio e senso de humor. Conversamos enquanto comíamos e êle se mostrou curioso, porque não se falava de outra coisa na usina: o tal forno que não funcionava tinha ficado famoso.
Quando acabamos de comer, o Jack disse que gostaria de ver o forno de perto, por curiosidade. Fomos até lá, rodeamos a instalação, o Jack se empoleirou num caixote para ver um indicador mais de perto e de repente fez um comentário: "há um ponto de solda aqui que está partido!"
Como já tínhamos esquadrinhado tudo, sobressaltei-me com aquela revelação. Tratei de arranjar uma escada para subir alguns degraus e verificar, espantado, que em realidade o tal ponto de solda tinha sido apenas o início de uma soldagem que não chegou a ser feita, prendendo a haspa reguladora de uma entrada de ar à alavanca que a acionaria. Como a solda não foi feita, na primeira vez em que a tal alavanca atuou o pingo de solda se rompeu, de modo que a entrada de ar simplesmente não funcionava. Instantaneamente se desfez o mistério: o forno não funcionava por insuficiência de ar para combustão.
Morremos de rir, mas depois eu fiquei um tanto ressabiado, quando tive que relatar o ocorrido ao chefe da manutenção, outro grande colega de que tenho boas lembranças, muito embora a culpa não fosse dele e nem de seu pessoal, porque se tratava de falha ocorrida na montagem da instalação.
Resolvido o problema do forno, pudemos finalmente voltar a nos ocupar com os outros aspectos da operação da fábrica de refratários, porque logo que houvesse material suficiente começaríamos a prensar tijolos.
Experimentei operar a prensa: achei difícil, incômodo, não entendia como os alemães, tão cuidadosos com todos os detalhes, tinham colocado as alavancas de comando tão longe do alcance das mãos. E como era ruim a posição para ver o quê se passava sôbre a mesa de prensagem! Uma droga, pensei. E quem iria operar aquela prensa? Estávamos distribuindo o pessoal, procurando adequar cada um à sua posição na operação, um trabalho insano, porque todos, inclusive nós, tinham que aprender fazendo, já que a montagem da fábrica tinha se atrasado e não tínhamos tido tempo para operação simulada.
Todos nos seus lugares, a operação da prensa sobrou, como uma espécie de pedra no sapato no fim da jornada. Comentei com o colega que ia ficar encarregado da operação da fábrica por algum tempo, transferido de outra unidade na última hora. Era um nissei muito simpático, meu colega da Escola Politécnica e grande amigo. Êle foi até a prensa para dar uma olhada, e de lá voltou dizendo que não tinha encontrado nenhuma dificuldade em operá-la.
Meio incrédulo, fui até lá com êle: para meu espanto, era verdade. Êle era bem baixinho, e cabia, - meio apertado, é verdade, - numa espécie de nicho que abrigava o pequeno púlpito com as alavancas e botões de manobra, de modo que chegava bem perto de tudo e manobrava tudo com facilidade. Só então me dei conta de que havia, por cima do tal púlpito, mas escondida dentro do nicho, uma pequena janela pela qual dava para ver a parte da mesa de prensagem que interessava, bem em frente ao púlpito, e controlar toda a operação. Os alemães, para os quais eu mesmo já seria um baixinho, tinham projetado a máquina para ser operada por baixinhos japoneses, porque mesmo os baixinhos brasileiros ainda seriam meio altos.
Tivemos que fazer às pressas o recrutamento do baixinho mais tampinha que pudemos encontrar, e de mais dois reservas, para colocar a fábrica em operação. (Cheguei a pensar que aquele seria um emprêgo para anões, mas depois encontramos os baixinhos necessários e tudo entrou nos eixos.)
É evidente que tinha ocorrido um êrro no projeto da instalação, e esse êrro tinha passado incólume pela nossa coordenação de projeto, pela qual eu tinha sido responsável a partir de certa data, quando os equipamentos já se encontravam no páteo da usina à espera da montagem. Em realidade, a fase de projeto e de sua coordenação já tinha terminado, e minha função era juntar toda a documentação para entregar tudo à empreiteira que iria efetuar a montagem.
Juntei os desenhos e documentos para poder conferir se estava tudo em órdem e sem faltar nada, e saí pela usina à procura dos equipamentos. Encontrei-os amontoados e deteriorados num pedaço de mangue que tinha sobrado nas cercanias de um galpão então ocupado por um pessoal de recursos humanos chefiado por um figurão, - outra história longa que qualquer dia contarei, - e vim a descobrir que o tal figurão tinha mandado esvaziar o galpão para lá instalar o seu pessoal: entre outras coisas, o citado figurão era mestre em "desapertar".
Acontece que o galpão tinha sido construído para abrigar os equipamentos da fábrica de refratários, que tinham chegado muito cedo, - o resto do projeto da usina foi que realmente se atrasou, - e o pessoal comandado pelo mencionado figurão simplesmente removeu de lá para fora os equipamentos, abandonando-os sem qualquer cuidado naquele pedaço de mangue.
Inspecionei e conferi o que foi possível e fiz um relatório, pedindo ao final que os equipamentos fossem levados a local mais seguro e subjetidos a manutenção, porque muita coisa tinha se estragado. Foi um relatório longo, enumerando tudo o que deu para ver, e dias depois houve uma espécie de ameaça velada, de que aquele relatório ia "dar samba".
Fiquei esperando o tal "samba", mas também, e principalmente, que os equipamentos fossem reparados, - algumas coisas tiveram que ser fabricadas de novo, e algumas partes compradas novamente, felizmente não muita coisa, - o que acabou causando um grande atraso que afinal resultou nos atropelos que descrevi acima quando foi necessário começar a operar a fábrica.
(Uma coisa puxa outra e acabei contando o episódio, que não deixou saudade, do relatório que ia "dar samba", e que envolveu um bocado de gente que naquela época era considerada "gente boa".)

1 Comments:

  • At Thu Oct 26, 10:50:00 AM EDT, Anonymous Anonymous said…

    Luiz, além de interessantes são humoristicas as situações relatadas por você na COSIPA.
    Curiosamente meu pai trabalhou na empresa por alguns anos no setor de transportes, como chefe geral talvez o tenha conhecido.
    E mais, um primo já falecido foi desenhista industrial por quase toda sua vida em Cubatão, seu nome : Henrique Pessina...um cara mais do que um desenhista de mão cheia, um verdadeiro artista em vários setores e que teve reconhecido seu talentoso trabalho na siderurgica...quem sabe vc os tenha conhecido, seria uma coincidência prazeirosa para mim.
    Um abraço.

     

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