Observador Isento (Unbiased Observer)

A space for rational, civilized, non-dogmatic discussion of all important subjects of the moment. - Um espaço para discussão racional, civilizada, não dogmática de todos os assuntos importantes do momento.

Sunday, October 29, 2006

Técnicas Secretas

Luiz A. Góes
Há uns dois anos apareceu por aqui o Amâncio, nosso primo, que me proporcionou dois dias de agradáveis conversas. Eu nunca havia tido a oportunidade de conversar com êle mais longamente: quando me casei, êle ainda era menino, e todas as vêzes que conversei com êle depois disso, havia sido por causa de algum problema de saúde com alguém da família, porque o Amâncio é médico.
Nessa visita, embora curta, conversamos a respeito de um milhão de coisas, mas a parte mais emocionante para mim foi que tivemos a oportunidade de trocar reminiscências muito antigas, eu me lembrando dos avós do Amâncio, particularmente do tio Chico, pessoa que conheci pouco, -mas o pouco que conheci me encantou muito, - e o Amâncio me contando um bocado de coisas lá de Araraquara. Mencionei que uma vêz, minha filha mais velha ainda bebê, paramos lá na casa deles numa das nossas idas para Rio Preto, quando tivemos uma recepção agradabilíssima por parte daquele simpático casal de tios de minha mulher. O tio Chico era músico, e eu sempre tive muita admiração por pessoas capazes de tocar algum instrumento, cantar, alegrar a vida da gente. Êle tinha um conjunto de jazz, e o Amâncio me brindou com deliciosas histórias em torno daquele lado da personalidade do tio Chico. Como músico, deve ter sido muito duro para êle ter perdido grande parte da audição em seus últimos anos, embora nunca tivesse perdido a simpatia e a afabilidade, sempre com um sorriso nos lábios.
O Amâncio perguntou então se em nossa visita havíamos comido "gravatinhas". Não entendi a quê êle se referia, e me explicou que eram uns pãezinhos em forma de gravatinha que o avô costumava comprar na Padaria do Perez, lá perto da casa deles. Acho que me lembro de ter comido um pão gostoso lá, mas como faziam muitos anos, não me lembrei do formato.
O Amâncio explicou então que as tais "gravatinhas" sempre foram um sucesso, seja porque eram muito gostosas, seja por causa do formato caprichoso. Sempre que vinha alguma visita, a tia mandava o tio Chico logo buscar as "gravatinhas".
Passando férias com os avós, quando menino, o Amâncio notou o sucesso das "gravatinhas", mas notou também que o avô não as comia. Um dia resolveu perguntar: "Porquê o senhor não come, vô?", e o avô limitou-se a sorrir sem nada dizer, - êle falava muito pouco mesmo, mas a pergunta foi repetida muitas vêzes, e sempre o mesmo sorriso sem resposta.
Um dia chegaram umas visitas e lá foi o tio Chico comprar as "gravatinhas". O Amâncio resolveu ir atráz, por curiosidade. Chegando à Padaria do Perez, ficaram sabendo que ia sair uma fornada dali a alguns minutos: só havia umas poucas "gravatinhas" da fornada anterior, já frias. O avô resolveu levar aquelas mesmo, dizendo que logo voltaria para buscar mais. O Amâncio então pediu ao avô que o deixasse ficar lá esperando.
E assim, esgueirou-se para a parte de tráz da padaria, porque queria ver como eram feitas as tais "gravatinhas", todas tão iguaizinhas com aquele formato caprichoso que devia dar muito trabalho. Mas viu que o padeiro espanhol estava enfornando uma batelada depois da outra, aparentemente sem muita dificuldade, tirando mancheias de massa de um enorme tacho e produzindo as "gravatinhas" em rápidos movimentos.
Apezar do calorão das proximidades do forno a lenha, foi chegando mais perto para ver como era aquilo: o espanhol estava com uma dessas camisetas sem mangas, suando em bicas na boca do forno, e fazia umas manobras rápidas que consistiam em colocar o naco de massa entre o braço e o tórax bem junto da axila para, num rápido movimento, transformá-lo numa pequena bolacha, que em seguida dobrava hàbilmente dando o formato à "gravatinha".
Chegando em casa, comentou com o avô: "Já sei porquê o senhor não come, vô!"
O avô limitou-se a sorrir sem nada dizer.
Quando a COSIPA me transferiu de novo para São Paulo, depois de nove anos trabalhando na usina em Cubatão, tive a oportunidade de desfrutar da companhia de algumas pessoas sensacionais que lá trabalhavam, que acrescentei ao grupo já numeroso de pessoas sensacionais que conhecia na usina.
Uma dessas pessoas era o Martinho Prado Uchôa, então vice-presidente da empresa. Estava com oitenta anos de idade, mas mantinha uma disposição extraordinária e tinha uma lucidez mental espantosa. Êle havia sido um dos três idealizadores da COSIPA, mas foi alijado da empresa pouco depois de a mesma ter sido fundada, para voltar muitos anos mais tarde como vice-presidente. Tinha paixão pela COSIPA (e eu também! como sofríamos!).
O Martinho era pessoa muito simples, apezar de pertencer a uma família paulista tradicional da região de Ribeirão Preto. As terras de sua família eram tão extensas no tempo de seus pais e avós que dentro dos seus antigos limites haviam surgido várias cidades, algumas das quais eu conhecia. (Assim fiquei sabendo que Uchôa e Santa Adélia deviam seus nomes aos avós do Martinho.)
Apezar de provir de uma família de fazendeiros, seu pai tinha sido engenheiro, e o Martinho havia seguido caminho semelhante, tendo se doutorado em metalurgia na Alemanha um pouco antes da Segunda Grande Guerra. Muitas coisas interessantíssimas me contou o Martinho.
Frequentemente almoçávamos juntos numa lanchonete que havia junto ao escritório, e num desses almoços o Martinho começou a falar de seu pai, que era engenheiro ferroviário e tinha passado a maior parte de sua vida construindo ferrovias.
Naquele tempo a maneira de construir ferrovias era mais ou menos assim: ia-se com um bando de mateiros abrindo picadas floresta a dentro, em busca do caminho que oferecesse condições para a construção, evitando subidas e descidas muito íngremes e tentando ficar nas encostas suaves para não ter que construir muitas pontes nem fazer muito movimento de terra. Uma vêz selecionado o caminho de certo trecho, e feito o respectivo levantamento topográfico, "engenheirava-se" o referido trecho e começava-se a construir a via férrea, - a "linha", - instalando-se um acampamento lá na outra ponta. Para esse acampamento transferia-se todo o pessoal da engenharia, e recomeçava-se o processo de abrir picada, etc. Quando a "linha" chegava lá, já estava na hora de mudar o acampamento para a outra ponta do trecho seguinte.
O pai do Martinho vivia nesses acampamentos, e o Martinho adorava, quando menino, passar as férias com o pai, vendo o pessoal trabalhar, caçando passarinhos e pequenos animais com bodoque ou pescando em algum riacho que aparecia pelas redondezas. Os acampamentos eram muito animados porque sempre havia, além do pessoal em serviço, - gente interessante, segundo o Martinho, - muitas visitas de pessoal do govêrno, e o pai do Martinho fazia questão de hospedá-los condignamente.
Uma das coisas que não dispensava era uma boa mesa. Para isso dispunha de um cozinheiro chinês que fazia uma comida deliciosa. Não havia ninguém que não gostasse, e os visitantes ficavam sempre maravilhados, saíam encantados com a acolhida de um modo geral e com a comida em particular.
Aquilo começou a chamar a atenção do Martinho porque, disse êle, a comida não variava muito de refeição para refeição, mas parecia sempre uma novidade. Muitas vêzes êle ouvia as pessoas dizerem, depois de comerem um pouco de salada logo ao se sentarem, que não havia nada como uma boa mesa daquelas para dar vontade de trabalhar duro.
Muitos visitantes também se referiam à salada, particularmente ao tempêro delicioso e ao fato de que não se distinguia o sal, nem o vinagre, nem o azeite, era uma mistura perfeita.
Sempre curioso e buscando novidades, o Martinho postou-se junto à cozinha um belo dia, para ver como era feita a tal salada. O chinês foi mostrando, pacientemente, como cortava as verduras, os tomates, os palmitos, as cenouras, os rabanetes, as cebolas e tudo o mais. Lá para as tantas o Martinho perguntou pelo tempêro, e o chinês apanhou um copo bem grande, colocou nele um bocado de sal e acrescentou azeite e vinagre até quase encher, deixando o copo sôbre a mesa.
"Não vai temperar a salada?", perguntou o Martinho. "Só na hora de servir", respondeu o chinês.
O jeito era voltar mais tarde.
Quando ouviu o barulho de alguém batendo numa lata, que era o sinal de chamada para o rancho, abalou-se o Martinho de volta para a cozinha, porque queria a todo custo ver temperar a salada.
Lá chegando, viu o chinês que mexia a mistura de sal, azeite e vinagre no copo com uma colher, tomava um gole bem grande da dita cuja e bochechava enèrgicamente para depois borrifar com a boca sôbre a salada, que ao mesmo tempo revirava também enèrgicamente com as mãos. Terminado o conteúdo de um gole, tomava outro e repetia a operação, até usar todo o copo de tempêro.
Não era de admirar que a salada fizesse tanto sucesso: havia um ingrediente secreto, e uma técnica de preparação ainda mais secreta.
Foi um perereco quando contou ao pai, disse o Martinho.
Quando menino, costumava passar as férias escolares em casa de meus avós em Santa Catarina. Passava o ano pensando nas férias, só para ir para lá e poder desfrutar do calor humano da família numerosa, das comidas gostosas que só minha avó sabia fazer, do colorido daquele pequeno mundo de imigrantes italianos, alemães, poloneses, libaneses e o que mais fosse, além de descendentes de portugueses que apareciam de vêz em quando.
Era um verdadeiro mundo de sotaques variados, de se ouvir gente conversando em línguas que não entendíamos, de ver meus avós trocando palavras em italiano entre si, ou conversando em italiano com algum visitante, o pessoal indo e vindo a cavalo ou em carroças, carroções, charretes, havia cavalos e carroças no fundo do quintal da casa de meu avô, além de um caminhão e de um velho fordeco de um de meus tios.
Era uma vida intensa, sempre surgindo alguma novidade todos os dias ou, se não surgia nenhuma, meus tios inventavam alguma coisa. Um dia íamos pescar, no outro íamos fazer um piquenique, no outro íamos até alguma "colônia", que é como os sítios e fazendas por lá eram chamados, ou então havia a "sessão pão-duro" no cineminha poeira, cuja entrada era só um cruzeiro e passava três filmes, ou o "footing" na praça, - a que eu era menino e ia só assistir, - ou alguma festinha no clube, ou até mesmo um joguinho de baralho bastante divertido, com tanta gente querendo jogar para fazer brincadeiras e palhaçadas.
Um de meus tios tinha (e ainda tem) a minha idade, e éramos companheiros inseparáveis. Depois que crescemos um pouquinho fomos ficando corajosos, começamos a ir pescar no rio Iguaçu sem esperar pela companhia de um dos mais velhos, às vêzes alugávamos um bote e remávamos um pouco rio abaixo ou rio acima.
As nossas pescarias eram geralmente fraquinhas, porque não conhecíamos muito bem a técnica da coisa e nem tínhamos equipamento que permitisse jogar a linha mais longe: contentávamo-nos com a clássica varinha de bambu, um barbante, - naquele tempo não havia fio de nylon, - uma rolha para servir de flutuador, uma chumbada que tirávamos de umas latas de conserva, e anzóis, os únicos que não eram improvisados. Antes de sair tínhamos que catar minhocas no fundo do quintal, porque eram só minhocas que usávamos como iscas.
Voltávamos das pescarias, no final do dia, queimados de sol e cansados, mas contentes com os poucos peixinhos que conseguíamos apanhar. Minha avó nos prestigiava, sempre fritando prontamente o que trazíamos e colocando na mesa no jantar.
Um dia, não me lembro porquê, meu tio companheiro não estava disponível e resolvi ir pescar sòzinho. Andei pelas barrancas do rio, para cima e para baixo, experimentando vários lugares, mas naquele dia a coisa estava ainda mais frustrante do que de costume: consegui pegar apenas três lambarizinhos ou coisa que o valha. Começando a escurecer, recolhi meus trecos e comecei a caminhar de volta para casa, percorrendo a margem do rio para alcançar o caminho por onde tinha vindo.
Em dado momento vi uma aglomeração à beira d’água e resolvi ir ver o quê era. Para meu espanto, havia uns dez ou mais sujeitos de várias idades pescando com varinhas como eu, mas pegavam um peixe atráz do outro. Empunhei a minha vara mais do que depressa e comecei a colocar uma minhoca no anzól, quando um garoto a meu lado disse para não perder tempo porque não precisava. Para meu espanto, era só jogar o anzól dentro d’água e já havia algum peixe mordendo. Comecei a puxar um atráz do outro, como os demais, alguns pequenos, outros maiorzinhos, a meu ver um verdadeiro milagre, melhor do que qualquer estória de pescador.
Acabei chegando em casa já noite bem escura, mas com uma fieira de peixes enorme para os padrões de nossas pescarias.
Minha avó estava com o jantar feito, mas avisou que ainda ia fritar os peixes, de modo que ficamos esperando. Enquanto isso, meu avô começou a se acomodar na cabeceira da mesa, uma dessas mesas compridas porque a família era numerosa, empunhando o seu copo de vinho tradicional. À sua direita, todos sabiam, sentava-se minha avó, e à sua esquerda geralmente era quem meu avô chamava por alguma razão especial, ou então o mais velho de seus filhos presentes. Havia um senso de hierarquia que era tàcitamente respeitado.
Naquela noite minha avó colocou o prato com os peixes fritos na mesa e meu avô me chamou para sentar à esquerda dele! Foi uma glória! À medida que íamos comendo, meu avô ia fazendo perguntas: "A quê horas você saiu?" "Porquê foi sòzinho?" "Não sabe que é perigoso?" "Nunca mais faça isso!" "Então você finalmente aprendeu a pescar de verdade, hein?" "Onde foi que você pescou?" "Em vários lugares?" "Mas onde foi que você pegou mais peixes?"
Expliquei que havia sido num local onde havia muito peixe e nem era necessário usar as minhocas, um ponto na beira do rio onde havia um tubo grande…
"Porca miséria!", exclamou meu avô olhando para minha avó e dando uma gargalhada. "Êle pegou esses peixes lá na saída do esgoto…" e empurrou o prato. "Esse prato não quero mais nem ver".
Minha avó tratou de ir buscar outros pratos, porque todo mundo começou a jogar fora os peixes. Fiquei numa frustração daquele tamanho, sem compreender porquê êles não queriam mais os peixinhos, todos bem limpinhos, fritinhos e gostosos, que eu tinha pescado e minha avó havia preparado…

1 Comments:

  • At Wed Nov 28, 06:27:00 PM EST, Anonymous Anonymous said…

    ra ra ra ra...
    pois é Luis, eu também pesquei nesse "esgoto".Ao lado existia um pôrto de areia.
    Só..., que não contei para ninguém.

    José Ângelo Contin Garcia

     

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