Observador Isento (Unbiased Observer)

A space for rational, civilized, non-dogmatic discussion of all important subjects of the moment. - Um espaço para discussão racional, civilizada, não dogmática de todos os assuntos importantes do momento.

Wednesday, February 21, 2007

Amigos Milenares

Luiz A. Góes
Numa sexta-feira de verão, almoçando com o Martinho Prado Uchoa na lanchonete a que costumávamos ir, lá no prédio em que ficavam os escritórios da COSIPA em São Paulo, êle inesperadamente me convocou para acompanhar uma visita à usina de Piaçaguera que seria efetuada no dia seguinte por um certo grupo de pessoas de suas relações.
A convocação foi feita em forma de convite, mas convite de vice-presidente era órdem, de modo que no dia seguinte de manhã lá estava eu, debaixo daquele sol escaldante costumeiro, esperando pelo Martinho e seu grupo na entrada do prédio da administração da usina. Vieram num ônibus, no qual embarquei também, o qual se encaminhou em seguida para a entrada da usina e foi percorrendo lentamente sua avenida principal enquanto o Martinho fazia as vêzes de relações públicas e guia, explicando que "ali, à nossa direita, fica a laminação. Bem à esquerda fica a fábrica de oxigênio. Mais adiante, também à esquerda, fica a aciaria, onde se faz o aço. Mais à frente, ainda à esquerda, fica o alto-forno, onde se extrai o ferro do minério, e à direita fica a coqueria, onde se produz o coque que serve para tirar o ferro do minério no alto-forno."
Aquela maneira de conduzir a coisa me pareceu bem peculiar, porque o Martinho era metalurgista e seguramente tinha condições de dizer coisa muito mais elaborada, além do fato de estarmos apenas percorrendo a avenida principal sem entrar em nenhuma unidade produtiva. O grupo de visitantes era um tanto peculiar também: havia um senhor de certa idade sentado ao lado do Martinho, o qual parecia conhecê-lo bastante, porque trocavam impressões, faziam comentários entre si, e sorriam repetidamente durante todo o tempo. Esse senhor usava uma boina e um lenço ao pescoço, que me chamaram a atenção mas a minha santa ignorância custou a permitir que eu atinasse logo com a coisa. O restante do grupo era formado por gente bem mais jóvem, rapazes e moças. Eram estudantes de antropologia, ou de arqueologia, da Universidade de São Paulo. O senhor de boina chamava-se Duarte: não me lembro de seu primeiro nome (alguém me ajudaria a lembrar?), mas depois me acostumei a ler seu nome várias vêzes nos jornais de São Paulo. Era professor da Universidade, e aqueles jóvens eram seus alunos.
Achei curioso que um grupo de universitários daquela área de estudos se interessasse em conhecer uma usina siderúrgica, mas a coisa foi ficando mais clara quando o ônibus começou a enveredar por um caminho que começava a contornar o Morro da Tapera, lá por traz do alto-forno.
O Morro da Tapera era a única elevação existente no terreno da usina naquela época, e como o restante era quase todo coberto por mangues, pensou-se logo em usar material do referido morro para aterrar todo o terreno em volta. Entretanto o problema, quando a construção da usina começou, era como chegar ao tal morro e trazer material de lá, porque logo se verificou que era um tanto instável e precisava de obras de contenção para impedir que ameaçasse esparramar-se sôbre a usina, podendo a idéia de desmontá-lo vir a constituir um tiro pela culatra. Mais tarde, quando a companhia adquiriu a chamada Ilha dos Amores, a idéia de usar material do Morro da Tapera para aterrá-la voltou à baila, não sei se algum dia foi levada adiante.
A história da tal visita começou alguns anos mais cedo, quando o colega encarregado das obras de contenção do Morro da Tapera foi procurado por um de seus subordinados que lhe disse, muito assustado, ter ocorrido algum crime naquele local. Alarmado, o colega foi até o ponto indicado pelo seu auxiliar e constatou que a lâmina do trator que fazia a movimentação de terra tinha descoberto uma porção de ossos, entre êles alguns crânios humanos. A providência imediata que òbviamente se impunha era chamar a polícia, que lá compareceu no mesmo dia e instaurou inquérito. A inspeção do local revelou existirem ali várias ossadas, talvêz denunciando alguma ação criminosa de proporções incomuns.
No dia seguinte os jornais da Baixada Santista publicaram, nas colunas de ocorrências policiais, o achamento das tais ossadas misteriosas, o que chamou logo a atenção do pessoal da Universidade de São Paulo, que providenciou para que o local fosse interditado tanto para o pessoal da usina como para a polícia, porque reconheceu tratar-se de um daqueles sítios conhecidos pelo nome de Sambaqui.
Eu era extremamente ignorante a respeito daquilo, de modo que não me interessei muito pela coisa na época, mesmo porque quando o assunto começou ainda estávamos na fase heróica de construir a usina e colocá-la em operação, não havendo mãos a medir e nem tempo para mais nada, já curto demais para descansar nos finais de semana em que frequentemente dávamos plantão na usina.
Numa ocasião em que tive que ir ao alto-forno durante um dos tais plantões, aproveitei para ir até o tão falado Sambaqui, onde havia algumas pessoas trabalhando com umas pequenas ferramentas, pacientemente escavando, escovando, pincelando uns ossos que iam ficando visíveis. Estavam preocupados em impedir que adentrássemos a área de seus trabalhos e foram parcimoniosos em suas informações, dizendo apenas que se tratava de povoações muito antigas que haviam existido naquela área.
Na visita com o grupo do Martinho fiquei bastante surpreendido com o que vi: as escavações, pacientemente conduzidas durante todos aqueles anos, tinham se aprofundado muitos metros, e várias dezenas de esqueletos já haviam sido encontradas, - creio que no final foram mais de cinquenta, - além de uma enorme quantidade de objetos como ferramentas de pedra e de ossos, adornos como colares de contas e de escamas de peixes e coisas do gênero, além de uma infinidade de cascas de ostras e coisas semelhantes.
O professor explicou que a palavra Sambaqui, que também se diz Tambaqui, é de origem indígena, e vem de "tambá", conchas, e "qui", monte cônico. Trata-se, em realidade, de um local de sepultamento que era usado por aquela gente, e a datação dos esqueletos encontrados tinha revelado que os mesmos tinham pelo menos 7000 anos de idade! De repente me dei conta de que quando a civilização egípcia começava a se formar, uns 5000 anos antes da nossa era, aquele povo já lá estava enterrando seus mortos debaixo de montes de conchas! O professor Duarte disse que aquele sítio não tinha uma profundidade muito grande porque estava na encosta de um morro de proporções bem maiores, mas que outros sítios do gênero podiam alcançar várias dezenas de metros de altura. E mais, que existem ocorrências de Sambaquis em toda a costa leste brasileira ao sul da Bahia. Explicou ainda que povos indígenas mais recentes ocuparam os locais antes ocupados pelos homens do Sambaqui, de modo que nesses locais frequentemente se encontram objetos mais modernos, de cerâmica e outros, sendo necessário saber distinguir uma coisa da outra. Pelo que me lembro, no tal Sambaqui de Piaçaguera não havia nada de cerâmica: era, aparentemente, um sítio virgem nesse particular.
Depois desse episódio, comecei a prestar mais atenção ao assunto, mas tudo o que li a respeito até hoje não trouxe nenhum esclarecimento sobre essa gente, de onde veio, qual a sua origem. Pelo que vi, sei apenas que eram iguaizinhos a nós, ou pelo menos os esqueletos eram idênticos aos que eu conhecia das aulas na escola secundária e dos livros de medicina do lar que tinha em casa, tanto em feições como em dimensões.
No almoço que se seguiu, o Martinho disse, com a sua verve, que naquela usina tínhamos homens de aço e também homens enferrujados, como aqueles amigos milenares que lá tinham ficado durante milhares de anos à nossa espera. Foi um sábado bastante instrutivo para mim, e mais recentemente andei procurando colher alguma informação mais detalhada sobre o Sambaqui da COSIPA, mas nada encontrei entre o que se encontra publicado na Intenet. Isso me parece curioso, porque em outros sítios nela citados e descritos até com algum detalhe não consta terem sido encontrados tantos esqueletos quantos foram retirados do Sambaqui de Piaçaguera.
Na época da visita eu já trabalhava em São Paulo, mas continuava residindo em Santos e me encontrava constantemente com o Maro Chioccarello, que continuava na usina e, ouvindo o meu relato, começou a acompanhar o assunto do Sambaqui mais de perto, além de efetuar visitas à Ilha dos Amores, para a qual havia planos de numerosas obras de expansão da usina, como veio a ocorrer mais tarde. Nela o Maro encontrou umas ruinas misteriosas, cobertas de mato e aparentemente muito antigas, que planejávamos explorar algum dia, mas vim a ser transferido para o exterior e não mais soube de nada a respeito delas.
O Maro, que era um grande colecionador de "causos" e contador de histórias, infelizmente faleceu antes de nos contar mais alguma coisa a respeito dessas ruinas, que acredito terem sido destruidas durante as obras que se seguiram. Talvêz algum dia êle me conte essa história, quando nos encontrarmos novamente.

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