Observador Isento (Unbiased Observer)

A space for rational, civilized, non-dogmatic discussion of all important subjects of the moment. - Um espaço para discussão racional, civilizada, não dogmática de todos os assuntos importantes do momento.

Thursday, March 01, 2007

Dúvida

Luiz A. Góes
Lá naquela cidade do interior das Gerais o pessoal vivia num cortado. A TFM, chefiada pelo padre que comandava as beatas da igreja, não dava folga a ninguém, e a turma vivia tentando inventar coisas que pudessem remediar a situação.
Mas antes de melhorar, as coisas só pareciam querer piorar.
Os poucos clubes sociais andavam na piór, porque havia se formado uma campanha para impedir a venda de bebidas alcoólicas, e além disso haviam acabado com as salas de jogo em todos êles. E eram bem poucos os que conseguiam a compreensão das esposas para organizar um baralhinho em casa.
Um motel que alguém teve a idéia de construir teve que fechar as portas depois que a TFM começou a organizar grupos para ir rezar o terço na entrada todos os dias das dez da noite à uma da manhã.A casa da Jandira, último bordel que sobrou lá na ponta da cidade, estava a ponto de abrir falência.
O padre vigiava tudo, ficava de binóculo lá na torre da igreja antes da missa do domingo para ver quem vinha e quem não vinha, e depois da missa para ver quem encontrava com quem, quem saía com quem, para onde iam e o que faziam.
Além disso, o confessionário era um instrumento poderosíssimo: as beatas entregavam toda semana relatórios completos de todos os diz-que-diz-que, de todos os boatos, de todas as conversas de vizinhas por cima do muro, dos comentários que traziam as empregadas domésticas, os vendedores ambulantes, o quitandeiro, o padeiro, o leiteiro... Todo mundo ficava sabendo de tudo, porque o padre tinha o voto de silêncio sôbre o que ouvia no confessionário, mas as beatas não...
Um dia o pessoal que trabalhava na fábrica, que uma grande firma da capital tinha lá, voltou para casa com a notícia de que tinham que ir a Belzonte para uma reunião que ia haver na sexta-feira depois do expediente. Previam que seria uma reunião com jantar e tudo, de modo que cada um se meteu na sua melhor fatiota e lá se foram, num trem que passava às duas horas e chegava lá por volta das seis.
Na tal reunião, com jantar e tudo, foram anunciadas promoções para quase todos êles, e os que não foram promovidos ganharam significativos aumentos salariais. Foi um dia, ou melhor dizendo, uma noite de glória para todos. Lá pelas dez e meia, saindo da reunião-jantar e tendo bebido um pouco mais do que o costume, um deles sugeriu que fossem a algum lugar para comemorar, já que de qualquer maneira teriam que pernoitar por lá e só poderiam retornar no dia seguinte.
E assim saíram perambulando pelas ruas movimentadas até que toparam com um local alegre, com música, dança e, verificaram logo, companhias à vontade. A fome e a vontade de comer se juntaram imediatamente, caíram todos na gandaia sem pestanejar, e só foram se dar conta de que teriam que voltar para casa no dia seguinte, depois de terem tirado uma forra de muitos anos numa noite só.
O mais difícil para cada um deles foi descobrir aonde cada um havia ido parar, porque tinham vindo juntos e tinham que voltar juntos para não dar na vista. Logicamente a maioria perguntou logo à companheira ao lado onde estavam e onde estariam os demais, e assim foram se achando em vários hotelecos da vizinhança. Quando todos haviam sido encontrados, dirigiram-se à estação e pegaram o trem para casa. Durante a viagem, discutiram o assunto cautelosamente e concluiram que o mais prudente seria guardar o mais absoluto segredo, ninguém faria absolutamente nenhum comentário na cidade com quem quer que fosse.
A coisa deu certo por algum tempo, mas o Valtinho, que era solteiro e frequentava um bar para tomar umas cervejas aos sábados, acabou inventando de contar vantagem depois de umas e outras. A história do Valtinho num instante se espalhou e a mulherada começou a especular o quê teriam feito os outros, porque o Valtinho era solteiro mas os outros eram casados. As beatas na igreja apertaram a mãe do Valtinho, que por sua vêz extraiu do filho uma confissão completa. Confissão com dedo duro e tudo, tintim por tintim.
Foi um Deus nos acuda! A notícia se espalhou mais depressa do que fogo em rastilho de pólvora. Foi todo mundo apertando todo mundo na hora do jantar, todo mundo negando, mas alguns começaram a fraquejar tomados de remorso ou terror, e assim em poucos dias a cidade toda comentava que o pessoal da fábrica havia ido a Belzonte a aprontado a valer.
A mulherada se reunia no clube às quartas feiras para jogar bolão, uma espécie de boliche que nunca entendi bem, e naquela quarta feira nem jogaram: ficaram o tempo todo tramando um castigo, uma vingança, uma lição, seja lá o que fosse, ainda mais que várias delas haviam corrido à igreja consultar o padre e de lá voltaram bem estimuladas. Depois de muita lavação de roupa suja, acabaram combinando: fariam uma greve de dois meses! E ai daquele que fosse pêgo tentando escapar!
Depois de alguns dias a coisa começou a ficar quente, e depois de uma semana já estava em ponto de fervura. A turma começou a se reunir na hora do almoço, no fim do dia, e até durante o trabalho, em rodinhas de discussão acalorada, para tentar achar uma saída. Os que tinham alguma coisa a fazer fora da cidade eram logo desencorajados pelos demais: viajar, nem pensar! Vamos torcer para que a diretoria não chame ninguém até que as coisas se resolvam. E tome chá de imaginação para quebrar a resistência da mulherada. Mas nada! Elas estavam firmes como rochas!
A Jandira, numa pindaíba de dar dó com as suas garotas, teve uma idéia: quem sabe eu consiga fazer uns cobres abrindo umas mesas de jogo, diversificando o negócio. Quem sabe assim o pessoal crie corajem e venha até aqui, os que estiverem mais a perigo entrando e saindo pela porta dos fundos, e o Quinzão montando guarda na porta, para segurar quem vier tentar espionar.
Da idéia à ação foi um pulo. Os primeiros a começarem a aparecer foram os solteiros, mas logo os casados também começaram a descobrir como burlar a vigilância, embora sempre preocupados.
E, como de costume, a notícia logo começou a se espalhar, que a Jandira havia colocado umas mesas e o pessoal ia lá jogar e tomar umas biritas. Se as meninas entravam na dança também, ninguém podia garantir, mas...
A dúvida logo se instalou na cabeça de cada uma: cada vêz que o marido não estava à vista e não era horário de trabalho, pensavam logo se não estaria na casa da Jandira. Alguns saíam no sábado com a vara de pescar ou com a espingarda de chumbo para ir pescar ou caçar, como de costume, levavam o cachorro, lanche e tudo o mais, e tratavam de voltar com alguma coisa, pescado ou caçado, mas a dúvida, cruel dúvida, sempre existia.
Algumas mulheres, mais corajosas, resolveram enfrentar o diabo de frente: desconfiando, começaram a ir até a casa da Jandira, desafiando a má reputação do pedaço, para perguntar ao Quinzão se havia visto o marido por lá.
Um dos maiores frequentadores das mesas de jogo da Jandira ficou sendo o Seu Nestor, gerente de uma das seções da fábrica, que saía para pescar mas ia direto para lá, depois de combinar com um de seus subordinados a compra de parte do pescado que êste conseguisse trazer do rio até umas duas da tarde. O "Seu" Nestor era muito vivo, não deixava ponto sem nó nem fresta sem fechar. Logo no primeiro dia chamou o Quinzão, deu-lhe uma bela gorgeta que ia sempre se repetir, e instruiu: "Se a minha mulher aparecer perguntando por mim, ocê dimira."
O Quinzão embolsou a nota e foi para a portaria, como de costume. Nada aconteceu por vários dias, até que avistou a mulher do Seu Nestor vindo lá adiante em passo apertado e bufando como uma locomotiva. Lembrou-se da recomendação mas não lhe ocorreu o quê devia fazer. Correu lá dentro e perguntou: "Seu Nestor, se a sua mulher vier, o quê que é prá fazer mesmo?" "Ocê dimira, sô." "Dimira???..." "É! Ocê diz assim: magina!!!!"
E assim, cada mulher que chegava à porta da Jandira perguntando pelo marido, o Quinzão dizia: "Magina! Vi não!"
Parecia que o pessoal havia encontrado uma solução perfeita, daquele mato não saía coelho, e a mulherada voltou a se reunir para discutir nova estratégia.
A idéia surgiu como um ráio: fariam uma excursão de fim de semana, só as mulheres!
Combinaram que fariam todos os preparativos em segredo, só contariam aos maridos na véspera, para não dar tempo de reagirem.
E os preparativos começaram. As poucas lojas da cidade num instante começaram a vender pano, linha, sapato novo, bolsa nova e tudo mais, e as costureiras ficaram super atarefadas com as encomendas urgentes que receberam em grande número e ao mesmo tempo. Os maridos logo observaram pelas contas bancárias que havia algo no ar, ou melhor, não só no ar, porque a gastança estava meio grande mas êles não viam em quê e elas não diziam.
Será que o padre está arrancando dinheiro para reformar a igreja?, pensavam. Mas lá na igreja não havia qualquer sinal de obra ou pintura. Novamente o Seu Nestor foi quem teve a idéia que desfêz o mistério: foi até a loja de armarinhos do Messias, lá na esquina depois do bar do Manoel, e ficou sabendo que muitas mulheres haviam comprado pano, linhas e outras coisas nos últimos dias, aparentemente para fazer vestidos novos.
Nas rodinhas a turma começou a especular, sabendo do destino do dinheiro, o quê estaria tramando a mulherada.
"É isso, vão fazer uma festa surpresa!", disse um deles, e os outros concordaram. Mas quê festa? E quando? E onde? E porquê? No fim de semana descobririam, porque seria impossível esconder.
Mas não deu tempo: na sexta-feira, com todo mundo trabalhando, a mulherada apareceu em peso na estação e pegou o trem das duas para Belzonte. O pessoal chegou para jantar no fim do dia, e só encontrou a empregada e as crianças, mais o prato de comida requentado, porque a patroa havia ido para Belzonte. "Prá Belzonte? Ai, meu Deus!" E foi uma reação unânime: correram todos para a estação, para perguntar ao bilheteiro se tinha vendido passagem para a mulher ir a Belzonte. O chefe da estação foi logo dizendo que o trem havia ido meio superlotado naquele dia, porque a mulherada toda estava nele, e todas de vestido novo, parecia que iam a uma festa.
"Não tem outro trem? Temos que ir atraz!"
"Tem um que passa aqui às dez horas, mas é um mixto que vai parando, chega lá só de manhã cedo."
Pernas para que te quero: correram todos para casa, para tomar uma chuveirada, trocar de roupa, arrumar uma maletinha e voltar para esperar o trem das dez. Aboletaram-se nele de qualquer jeito, porque tinha só um vagão de passageiros, um "segundão" sujo de dar dó, e passaram uma noite de cão, cada um se perguntando o quê aquela danada estaria aprontando em Belzonte.
Só então, cabeceando de sono, um deles se lembrou de perguntar: "Aonde será que elas foram, lá em Belzonte?!" Pergunta crítica! Na cidadezinha deles era fácil saber, mas em Belzonte, não saberiam nem por onde começar. E, o que era ainda piór, não saberiam a quem perguntar.
Lá pelas sete da manhã o trem foi encostando na plataforma e os coitados desceram esbaforidos e sonados. Foram andando em direção à saída. E estavam na calçada discutindo para onde ir, se tomariam um táxi, ou vários táxis, quando o Seu Nestor se lembrou de que no caminho haviam visto um sujeito dormindo num banco da sala de espera. Vai ver que êle estava aqui ontem, pensou. Voltou lá e tentou acordá-lo, mas êle estava mais bêbado do que um gambá. Perda de tempo. Havia uma lanchonete, que àquela hora servia café a alguns viajantes, mas o pessoal mal tinha começado a trabalhar, ninguém tinha visto nada na tarde do dia anterior. Acabaram desistindo e se agruparam em táxis para percorrer a cidade, tentando dar "dicas" aos motoristas que permitissem descobrir onde estariam as suas "mais caras" metades.
Os taxistas divertiram-se à bessa com a história e com o dinheiro que ganharam rodando a manhã toda e boa parte da tarde, mas nada encontraram em lugar nenhum. E assim acabaram voltando à estação, cansados e frustrados. Sentaram-se nas mesas da tal lanchonete e começaram a pedir uns sanduíches, porque só então se deram conta de que ainda não tinham comido nada e estavam de estômago doendo.
Nisso o bêbado começou a acordar lentamente: levantou-se ainda meio cambaleante e foi indo em direção ao banheiro. Vendo o bêbado em pé, a turma teve instantaneamente a idéia coletiva de abordá-lo novamente. O coitado ficou atrapalhado, não entendendo nada: "Se não for logo eu faço na calça", ameaçou.
Deixaram-no ir, mas foram atráz e ficaram esperando até que êle se aliviasse e dispusesse a conversar. "Será que oceis podia judá com uma branquinha?"
Levaram-no para uma das mesas, pediram um café, pão, manteiga, e, claro, uma branquinha, que o bêbado, - já agora não tão bêbado, - traçou num gole antes de começar a comer o pão e a tomar o café. Com tanta gente fazendo pergunta ao mesmo tempo, o dito cujo parecia perdido no espaço. De repente exclamou: "Todo dia agora é isso: um dia é um bando de matuta, no outro uma turma de doido..."
"Quê bando de matutas?" perguntou o Seu Nestor, desconfiado. O bêbado olhou-o com olhos esgazeados, tomou mais um gole de café, mordeu o pão, deu umas mastigadas, e de novo o Seu Nestor perguntou" "Quê bando de matutas?"
"Umas que ficaram aí fazendo um barulho danado, não me deixavam dormir..."
"Quando foi isso?"
"Sei não... acho que foi ontem..."
"Ontem? E para onde elas foram????"
"Sei não... quando o barulho acabou eu consegui dormir e..."
O grupo ficou encafifado. E agora? Será que eram elas mesmo? Nenhum deles considerava a própria mulher uma matuta, mas o bêbado... E ali ficaram, discutindo o assunto um bocado de tempo, até que, sem chegar a conclusão nenhuma, um deles ponderou: "E se elas voltarem para lá e não nos encontrarem? O quê vamos fazer? Quê desculpa vamos dar?"
Precisavam de uma estratégia urgente, e concluiram que o remédio seria retornar, antes que a coisa se tornasse ainda mais complicada: na bilheteria ficaram sabendo que um trem de passageiros havia partido às 7 horas, e que havia um outro "segundão" mixto saindo às 9. Esse chegaria lá de madrugada. Quê remédio: tomaram o "segundão" e passaram mais uma noite insones.
De madrugada, cansados e famintos, cada um foi para casa e a cena foi mais ou menos a mesma: ao entrar no quarto, a luz se acendeu e a mulher perguntou: "Onde é que você estava desde ontem, e até esta hora?"
Confusos, alguns tentaram contra-atacar perguntando aonde "ela" tinha ido, outros balbuciavam desculpas confusas, e as mulheres novamente se fecharam, nenhuma disse uma única palavra mais.
Até hoje o pessoal não sabe o quê se passou, se elas de fato foram a Belzonte, o quê fizeram ou deixaram de fazer lá, se eram mesmo as matutas mencionadas pelo bêbado da estação.
Não mais falaram no assunto, para não piorar as coisas, e as mulheres também não falaram mais no assunto e terminaram a greve. Só ficou, na cabeça de cada um, a tal de dúvida...

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