Vinhos
Luiz A. Góes
Não entendo nada de vinhos, mas gosto de bons vinhos. Por isso mesmo, fico sempre fascinado quando alguém demonstra saber alguma coisa e pode me dar uma aula sôbre esse assunto, sempre tão... - como direi? - ... saboroso.
Cresci vendo meu avô, um italiano de boa cepa, tomar vinho em todas as refeições, - acho que nunca o vi bebendo água, - e êle gostava de nos fazer experimentar, quando éramos pequenos, preparando aquelas "sangrias", com um bocado de açúcar e um pouquinho de vinho tinto para dar côr, que adorávamos.
Mas mesmo assim só vim a começar a gostar de vinhos depois de adulto, e de ter passado por algumas experiências que considero marcantes com esse tipo de bebida. Vou tentar relatar algumas delas.
Na chegada a Lisboa, há algumas décadas, minha mulher e eu vimo-nos como que "jogados fora" no aeroporto, porque devido ao tremendo atraso do vôo (da TAP) os conhecidos que iam nos receber não estavam lá. Tínhamos conhecido no avião um casal (êle francês, ela alemã), que estavam na mesma situação, e o francês sugeriu irmos para um hotel, que êle já conhecia, chamado Residência América. Bom e relativamente barato.
Dali a pouco o francês bateu em nosso quarto dizendo que êles iam dar uma volta na cidade e convidando-nos para irmos também. Minha mulher e eu resolvemos acompanhá-los e deixar para procurar os nossos conhecidos mais tarde.
Perambulamos pela cidade e mais ou menos na hora do almoço tomamos um barco para ir a Cacilhas, que fica no outro lado do Tejo. Lá encontramos um pequeno restaurante onde pedimos umas sardinhas grelhadas com maionese. A maionese foi preparada na hora em nossa presença, e com um bom vinho espumante foi um tal de comer sardinhas que não se acabava. Quando pensamos em ir embora, senti que minhas pernas não me aguentariam, depois de todo aquele vinho. Minha mulher disse a mesma coisa, e o francês pediu de novo, para minha surpresa, a lista de vinhos. Estudou-a demoradamente e pediu uma garrafa de um vinho bem velho. Tomamos apenas um copo cada um, - aquilo caía como se fosse um néctar celestial, - e quando acabamos de beber parecia que não tínhamos bebido nada, nem o vinho espumante e nem o vinho velho.
O francês disse que a última garrafa tinha sido o "apaga-besteiras".
Em anos subsequentes tive numerosas oportunidades de tentar aplicar aquela "técnica", mas a coisa nunca mais funcionou. Acho que é porque é preciso ser francês...
Poucas semanas depois vimo-nos instalados na Áustria, onde permaneci por alguns meses em meu treinamento profissional. E então me acostumei rapidamente a beber vinho, porque a Áustria tem excelentes vinhos brancos, - deve ter vinhos tintos muito bons também, mas os brancos eram os que faziam mais sucesso. E era interessante porque jamais se abria uma garrafa: pedia-se o vinho, e o garçom ou a garçonete nos trazia uma estante daquelas do tipo de laboratório químico com um enorme balão de vidro transparente cheio do dito cujo vinho. A gente então ia se servindo, abrindo a torneirinha, enchendo os copos e bebendo. Jamais um balão daqueles foi devolvido com vinho sobrando dentro. Eu nunca tinha bebido vinho austríaco antes, e fiquei sabendo que êles eram muito pouco engarrafados e exportados, porque os austríacos bebiam tudo, deixando muito pouco para ser mandado para fora do país.
Lembro-me que um dia nos disseram que estávamos na estação de vinho verde, porque os vinhos do ano começavam a ficar prontos e a serem degustados naquela época. Fomos uma noite a um restaurante numa pequena cidade próxima onde havia produção de vinho, e lá tomamos um bocado de vinho verde, comendo uma bela comida e ouvindo valsas de Strauss que uma orquestra tocava. Foi uma noite memorável, mas não foi muito fácil dirigir de volta para casa. Nem sei como algum policial não me impediu de dirigir, porque na Áustria costumava haver um policial à porta do restaurante fiscalizando e impedindo quem tivesse bebido além da conta de dirigir.
Houve uma época, em New York, em que eu era como que obrigado a escolher vinhos para servir a pessoas que convidávamos para aqueles almoços e jantares de negócios. Eu passava apertado quando não havia mais ninguém para me ajudar, porque os meus parcos conhecimentos podiam facilmente me trair. Eu procurava repetir vinhos que tinham sido servidos em refeições anteriores, o que nem sempre funcionava devido à grande variedade existente no mercado americano. Às vezes o restaurante oferecia o mesmo vinho de diversas safras diferentes, com o preço variando tanto mais para cima quanto mais antiga era a safra. Algumas vezes, dependendo de quem estávamos convidando, eu me via compelido a escolher safras bem antigas quando me declaravam que estavam sem estoque da última safra daquele vinho. Houve ocasiões em que o preço do vinho excedia bastante o da refeição…
Convivendo com essa situação e falando de vinhos com frequência, um belo dia o presidente de minha empresa começou a me dar uma espécie de aula sôbre vinhos: dizia uma porção de coisas sôbre vinhos do Reno, sôbre safras pares e safras ímpares, sôbre vinhos do Nappa Valley, sôbre vinhos italianos, vinhos alemães, e por aí vai, mas eu não consegui guardar muito do que êle disse de maneira ordenada: lembro-me daquelas informações de maneira meio embolada. Êle me aconselhou a comprar um livro sôbre o assunto para ler, o que prometi fazer mas nunca cheguei a cumprir. Êle não conhecia os vinhos austríacos: nisso eu estava melhor do que êle, mas resolvi não tocar no assunto por uma questão de respeito, porque êle era um bom homem.
Notei depois que algumas daquelas arengas sôbre vinhos êle repetia de vez em quando, principalmente quando estávamos em companhia de pessoas mais sofisticadas, talvez querendo demonstrar ser pessoa de boa cultura, conhecedor do mundo e das coisas. (Falava disso e das coisas que cultivava em sua fazenda, particularmente dos morangos, sôbre os quais dissertava longamente.)
Numa dessas ocasiões, em que jantávamos com um dos donos da firma de advocacia de Wall Street que nos servia, um indivíduo extremamente brilhante todas as vezes que o vi atuando de alguma forma, o meu presidente fez questão de pedir um vinho de preço bem salgado, mas que foi muito louvado pelo nosso convidado, que o elogiou repetidamente enquanto bebia. Não demorou muito para começarmos a ouvir uma daquelas aulas sôbre vinhos que o bom homem costumava dar: seu inglês era bastante fraco, e o advogado não falava português, de modo que fui como que intimado a servir de intérprete para boa parte da tal lição.
Nosso convidado ouvia com atenção, mas depois descobri que era por pura educação, - o meu presidente deve ter chegado, intimamente, à mesma conclusão, - porque a certa altura da conversa, em que o nosso hóspede contava que estavam introduzindo o uso de computadores no escritório de advocacia para facilitar a consulta a casos antigos, ou seja, à jurisprudência, que funciona muito na prática jurídica americana (imaginem só quanto tempo faz isso!), o meu presidente, sempre muito perspicaz, resolveu fazer uma pergunta sôbre as atividades do início da carreira do nosso convidado.
Ficamos sabendo então que êle tinha trabalhado, quando recém-formado, para uma firma de advocacia especializada, entre outras coisas, em grandes inventários. Imaginei logo que devia se tratar de algo muito especial, e pedi que êle desse um exemplo de algum caso que tivesse considerado extraordinário nessa área de inventários.
E assim êle contou que tinha feito parte de uma equipe encarregada da liquidação final do patrimônio de um triliardário que tinha falecido sem ter herdeiros diretos. Depois da divisão de todos os bens representados por ações, valores e propriedades de diversos tipos entre os herdeiros indiretos, restou fazer a liquidação da mansão em que o tal sujeito tinha vivido, um palacete em Manhattan que valia milhões como imóvel e pelas coisas que continha, notadamente móveis de altíssima categoria, obras de arte e utensílios de toda sorte, e uma enorme adega no sub-solo.
A instrução do representante dos herdeiros era para que tudo fosse vendido em sucessivos leilões, e o que fosse apurado fosse progressivamente sendo dividido entre os herdeiros. A última coisa a ser vendida seria, evidentemente, o imóvel, porque não teria sentido tirar tudo de lá antes de vender. E assim organizaram leilões e mais leilões, até que só sobrou a adega no sub-solo.
Passaram vários dias fazendo uma relação de tudo o que havia lá e ficaram maravilhados com o que foram encontrando. E no relato o nosso hóspede arregalava os olhos e ia citando os nomes dos vinhos de alta estirpe que encontraram e as respectivas safras, coisas do arco-da-velha de que eu nunca tinha nem ouvido falar. Eu olhava para a cara do meu presidente e êle estava mudo, tendo parado de comer e ouvindo pensativamente.
Pronta a lista de tudo, por dúzias e mais dúzias, anunciaram para os principais restaurantes de New York que tudo aquilo estava à venda pela melhor oferta, bastando que cada um apresentasse os preços que gostariam de pagar. E assim, poucos dias depois estava tudo vendido: os compradores compareceram e êles mesmos fizeram a remoção daquelas garrafas todas em pouco tempo.
Sobraram, entretanto, numerosas garrafas das chamadas "dúzias incompletas", e o representante dos herdeiros, quando consultado a respeito do quê fazer com elas, disse que os advogados que tinham trabalhado no caso podiam ficar com elas. Êles eram quatro, e assim dividiram tudo entre si e cada um carregou um bom número de garrafas em seu automóvel, já comemorando os numerosos jantares memoráveis que teriam dali em diante, com aqueles vinhos extraordinários à disposição.
Combinaram que fariam inicialmente quatro jantares, um na casa de cada um deles, somente para êles e suas esposas ou namoradas, para comemorar. E assim, poucos dias depois reuniram-se na casa de um deles, tomaram aperitivos e comeram salgadinhos e finalmente sentaram-se à mesa em grande estilo. O dono da casa abriu uma daquelas famosas garrafas e derramou um pouquinho do vinho em cada copo, para todos experimentarem antes de beberem de verdade.
Foi um momento de horror! O vinho estava avinagrado!
Lamentando a má sorte, o dono da casa puxou outra garrafa, que abriu e experimentou cautelosamente: também tinha se transformado em vinagre!
Abriu uma terceira: a mesma coisa! E assim, acabou abrindo todas as garrafas que tinham lhe cabido, para constatar que todas elas continham apenas o vinagre no qual o vinho tinha se transformado.
Desapontados, esqueceram o jantar e cada um correu para sua própria casa para, depois de abrirem as garrafas que tinham, telefonarem aos demais para dizer que todo o vinho que tinham estava avinagrado.
Além de terem perdido o esperado lauto jantar, perderam a noite de sono, porque começaram imediatamente a pensar o quê aconteceria quando aqueles restaurantes, que tinham pago fortunas pelos vinhos, começassem a reclamar. Sim, porque se aquelas garrafas tinham virado vinagre, seguramente todo o vinho vendido também estaria avinagrado.
Chegaram a combinar alguma estratégia para sair daquela situação, a forma como apresentariam a questão aos herdeiros para que êles devolvessem o dinheiro a fim de poderem indenizar os restaurantes, e como fariam para evitar que o assunto virasse notícia de jornal, que alguém da imprensa descobrisse e tivesse a idéia de publicar alguma coisa, o que seguramente prejudicaria profundamente o alto conceito do escritório de advocacia para o qual trabalhavam.
Passou-se uma semana, entretanto, e ninguém reclamou nada e nem ninguém falou no assunto. Esperaram mais uns dias e, como nada acontecesse, resolveram tirar a coisa a limpo: combinaram de ir jantar em um dos restaurantes e pedir um daqueles vinhos. Para grande surpresa deles, o vinho que pediram no restaurante estava perfeito. Quizeram falar com o gerente a respeito da compra dos vinhos da mansão do triliardário, e o mesmo se mostrou muito satisfeito com a compra que o restaurante tinha feito, sem nem de leve mencionar qualquer problema com aqueles vinhos.
Foram jantar no dia seguinte em outro daqueles restaurantes, e a mesma coisa se repetiu: estava tudo na mais perfeita órdem.
Diante do que para êles era um mistério, começaram a tentar entender o quê tinha acontecido, e finalmente um especialista que acabaram conhecendo esclareceu tudo: "lembram-se que quando venderam os vinhos os compradores disseram que iriam êles mesmos buscar e que vocês não precisavam nem tocar nas garrafas?" Êles se lembravam!
"Pois é… é que êles sabiam que vocês, como advogados, não saberiam lidar com aquêles vinhos tão velhos, e por isso mesmo extremamente sensíveis a manipulação inadequada!"
Estava desfeito o mistério: repartindo as garrafas que sobraram, nem tinham pensado que estavam arruinando o vinho com suas maneiras entusiasmadas e… desastradas.
Fiquei pensando com meus botões: se eu tiver alguma garrafa de vinho muito velha em casa, vou abrí-la o mais cedo possível e beber o vinho, porque com toda certeza não saberei como manipular vinho velho. Foi a minha lição daquela noite. E não me lembro de ter ouvido novamente o meu presidente dando aulas sôbre vinhos…
Não entendo nada de vinhos, mas gosto de bons vinhos. Por isso mesmo, fico sempre fascinado quando alguém demonstra saber alguma coisa e pode me dar uma aula sôbre esse assunto, sempre tão... - como direi? - ... saboroso.
Cresci vendo meu avô, um italiano de boa cepa, tomar vinho em todas as refeições, - acho que nunca o vi bebendo água, - e êle gostava de nos fazer experimentar, quando éramos pequenos, preparando aquelas "sangrias", com um bocado de açúcar e um pouquinho de vinho tinto para dar côr, que adorávamos.
Mas mesmo assim só vim a começar a gostar de vinhos depois de adulto, e de ter passado por algumas experiências que considero marcantes com esse tipo de bebida. Vou tentar relatar algumas delas.
Na chegada a Lisboa, há algumas décadas, minha mulher e eu vimo-nos como que "jogados fora" no aeroporto, porque devido ao tremendo atraso do vôo (da TAP) os conhecidos que iam nos receber não estavam lá. Tínhamos conhecido no avião um casal (êle francês, ela alemã), que estavam na mesma situação, e o francês sugeriu irmos para um hotel, que êle já conhecia, chamado Residência América. Bom e relativamente barato.
Dali a pouco o francês bateu em nosso quarto dizendo que êles iam dar uma volta na cidade e convidando-nos para irmos também. Minha mulher e eu resolvemos acompanhá-los e deixar para procurar os nossos conhecidos mais tarde.
Perambulamos pela cidade e mais ou menos na hora do almoço tomamos um barco para ir a Cacilhas, que fica no outro lado do Tejo. Lá encontramos um pequeno restaurante onde pedimos umas sardinhas grelhadas com maionese. A maionese foi preparada na hora em nossa presença, e com um bom vinho espumante foi um tal de comer sardinhas que não se acabava. Quando pensamos em ir embora, senti que minhas pernas não me aguentariam, depois de todo aquele vinho. Minha mulher disse a mesma coisa, e o francês pediu de novo, para minha surpresa, a lista de vinhos. Estudou-a demoradamente e pediu uma garrafa de um vinho bem velho. Tomamos apenas um copo cada um, - aquilo caía como se fosse um néctar celestial, - e quando acabamos de beber parecia que não tínhamos bebido nada, nem o vinho espumante e nem o vinho velho.
O francês disse que a última garrafa tinha sido o "apaga-besteiras".
Em anos subsequentes tive numerosas oportunidades de tentar aplicar aquela "técnica", mas a coisa nunca mais funcionou. Acho que é porque é preciso ser francês...
Poucas semanas depois vimo-nos instalados na Áustria, onde permaneci por alguns meses em meu treinamento profissional. E então me acostumei rapidamente a beber vinho, porque a Áustria tem excelentes vinhos brancos, - deve ter vinhos tintos muito bons também, mas os brancos eram os que faziam mais sucesso. E era interessante porque jamais se abria uma garrafa: pedia-se o vinho, e o garçom ou a garçonete nos trazia uma estante daquelas do tipo de laboratório químico com um enorme balão de vidro transparente cheio do dito cujo vinho. A gente então ia se servindo, abrindo a torneirinha, enchendo os copos e bebendo. Jamais um balão daqueles foi devolvido com vinho sobrando dentro. Eu nunca tinha bebido vinho austríaco antes, e fiquei sabendo que êles eram muito pouco engarrafados e exportados, porque os austríacos bebiam tudo, deixando muito pouco para ser mandado para fora do país.
Lembro-me que um dia nos disseram que estávamos na estação de vinho verde, porque os vinhos do ano começavam a ficar prontos e a serem degustados naquela época. Fomos uma noite a um restaurante numa pequena cidade próxima onde havia produção de vinho, e lá tomamos um bocado de vinho verde, comendo uma bela comida e ouvindo valsas de Strauss que uma orquestra tocava. Foi uma noite memorável, mas não foi muito fácil dirigir de volta para casa. Nem sei como algum policial não me impediu de dirigir, porque na Áustria costumava haver um policial à porta do restaurante fiscalizando e impedindo quem tivesse bebido além da conta de dirigir.
Houve uma época, em New York, em que eu era como que obrigado a escolher vinhos para servir a pessoas que convidávamos para aqueles almoços e jantares de negócios. Eu passava apertado quando não havia mais ninguém para me ajudar, porque os meus parcos conhecimentos podiam facilmente me trair. Eu procurava repetir vinhos que tinham sido servidos em refeições anteriores, o que nem sempre funcionava devido à grande variedade existente no mercado americano. Às vezes o restaurante oferecia o mesmo vinho de diversas safras diferentes, com o preço variando tanto mais para cima quanto mais antiga era a safra. Algumas vezes, dependendo de quem estávamos convidando, eu me via compelido a escolher safras bem antigas quando me declaravam que estavam sem estoque da última safra daquele vinho. Houve ocasiões em que o preço do vinho excedia bastante o da refeição…
Convivendo com essa situação e falando de vinhos com frequência, um belo dia o presidente de minha empresa começou a me dar uma espécie de aula sôbre vinhos: dizia uma porção de coisas sôbre vinhos do Reno, sôbre safras pares e safras ímpares, sôbre vinhos do Nappa Valley, sôbre vinhos italianos, vinhos alemães, e por aí vai, mas eu não consegui guardar muito do que êle disse de maneira ordenada: lembro-me daquelas informações de maneira meio embolada. Êle me aconselhou a comprar um livro sôbre o assunto para ler, o que prometi fazer mas nunca cheguei a cumprir. Êle não conhecia os vinhos austríacos: nisso eu estava melhor do que êle, mas resolvi não tocar no assunto por uma questão de respeito, porque êle era um bom homem.
Notei depois que algumas daquelas arengas sôbre vinhos êle repetia de vez em quando, principalmente quando estávamos em companhia de pessoas mais sofisticadas, talvez querendo demonstrar ser pessoa de boa cultura, conhecedor do mundo e das coisas. (Falava disso e das coisas que cultivava em sua fazenda, particularmente dos morangos, sôbre os quais dissertava longamente.)
Numa dessas ocasiões, em que jantávamos com um dos donos da firma de advocacia de Wall Street que nos servia, um indivíduo extremamente brilhante todas as vezes que o vi atuando de alguma forma, o meu presidente fez questão de pedir um vinho de preço bem salgado, mas que foi muito louvado pelo nosso convidado, que o elogiou repetidamente enquanto bebia. Não demorou muito para começarmos a ouvir uma daquelas aulas sôbre vinhos que o bom homem costumava dar: seu inglês era bastante fraco, e o advogado não falava português, de modo que fui como que intimado a servir de intérprete para boa parte da tal lição.
Nosso convidado ouvia com atenção, mas depois descobri que era por pura educação, - o meu presidente deve ter chegado, intimamente, à mesma conclusão, - porque a certa altura da conversa, em que o nosso hóspede contava que estavam introduzindo o uso de computadores no escritório de advocacia para facilitar a consulta a casos antigos, ou seja, à jurisprudência, que funciona muito na prática jurídica americana (imaginem só quanto tempo faz isso!), o meu presidente, sempre muito perspicaz, resolveu fazer uma pergunta sôbre as atividades do início da carreira do nosso convidado.
Ficamos sabendo então que êle tinha trabalhado, quando recém-formado, para uma firma de advocacia especializada, entre outras coisas, em grandes inventários. Imaginei logo que devia se tratar de algo muito especial, e pedi que êle desse um exemplo de algum caso que tivesse considerado extraordinário nessa área de inventários.
E assim êle contou que tinha feito parte de uma equipe encarregada da liquidação final do patrimônio de um triliardário que tinha falecido sem ter herdeiros diretos. Depois da divisão de todos os bens representados por ações, valores e propriedades de diversos tipos entre os herdeiros indiretos, restou fazer a liquidação da mansão em que o tal sujeito tinha vivido, um palacete em Manhattan que valia milhões como imóvel e pelas coisas que continha, notadamente móveis de altíssima categoria, obras de arte e utensílios de toda sorte, e uma enorme adega no sub-solo.
A instrução do representante dos herdeiros era para que tudo fosse vendido em sucessivos leilões, e o que fosse apurado fosse progressivamente sendo dividido entre os herdeiros. A última coisa a ser vendida seria, evidentemente, o imóvel, porque não teria sentido tirar tudo de lá antes de vender. E assim organizaram leilões e mais leilões, até que só sobrou a adega no sub-solo.
Passaram vários dias fazendo uma relação de tudo o que havia lá e ficaram maravilhados com o que foram encontrando. E no relato o nosso hóspede arregalava os olhos e ia citando os nomes dos vinhos de alta estirpe que encontraram e as respectivas safras, coisas do arco-da-velha de que eu nunca tinha nem ouvido falar. Eu olhava para a cara do meu presidente e êle estava mudo, tendo parado de comer e ouvindo pensativamente.
Pronta a lista de tudo, por dúzias e mais dúzias, anunciaram para os principais restaurantes de New York que tudo aquilo estava à venda pela melhor oferta, bastando que cada um apresentasse os preços que gostariam de pagar. E assim, poucos dias depois estava tudo vendido: os compradores compareceram e êles mesmos fizeram a remoção daquelas garrafas todas em pouco tempo.
Sobraram, entretanto, numerosas garrafas das chamadas "dúzias incompletas", e o representante dos herdeiros, quando consultado a respeito do quê fazer com elas, disse que os advogados que tinham trabalhado no caso podiam ficar com elas. Êles eram quatro, e assim dividiram tudo entre si e cada um carregou um bom número de garrafas em seu automóvel, já comemorando os numerosos jantares memoráveis que teriam dali em diante, com aqueles vinhos extraordinários à disposição.
Combinaram que fariam inicialmente quatro jantares, um na casa de cada um deles, somente para êles e suas esposas ou namoradas, para comemorar. E assim, poucos dias depois reuniram-se na casa de um deles, tomaram aperitivos e comeram salgadinhos e finalmente sentaram-se à mesa em grande estilo. O dono da casa abriu uma daquelas famosas garrafas e derramou um pouquinho do vinho em cada copo, para todos experimentarem antes de beberem de verdade.
Foi um momento de horror! O vinho estava avinagrado!
Lamentando a má sorte, o dono da casa puxou outra garrafa, que abriu e experimentou cautelosamente: também tinha se transformado em vinagre!
Abriu uma terceira: a mesma coisa! E assim, acabou abrindo todas as garrafas que tinham lhe cabido, para constatar que todas elas continham apenas o vinagre no qual o vinho tinha se transformado.
Desapontados, esqueceram o jantar e cada um correu para sua própria casa para, depois de abrirem as garrafas que tinham, telefonarem aos demais para dizer que todo o vinho que tinham estava avinagrado.
Além de terem perdido o esperado lauto jantar, perderam a noite de sono, porque começaram imediatamente a pensar o quê aconteceria quando aqueles restaurantes, que tinham pago fortunas pelos vinhos, começassem a reclamar. Sim, porque se aquelas garrafas tinham virado vinagre, seguramente todo o vinho vendido também estaria avinagrado.
Chegaram a combinar alguma estratégia para sair daquela situação, a forma como apresentariam a questão aos herdeiros para que êles devolvessem o dinheiro a fim de poderem indenizar os restaurantes, e como fariam para evitar que o assunto virasse notícia de jornal, que alguém da imprensa descobrisse e tivesse a idéia de publicar alguma coisa, o que seguramente prejudicaria profundamente o alto conceito do escritório de advocacia para o qual trabalhavam.
Passou-se uma semana, entretanto, e ninguém reclamou nada e nem ninguém falou no assunto. Esperaram mais uns dias e, como nada acontecesse, resolveram tirar a coisa a limpo: combinaram de ir jantar em um dos restaurantes e pedir um daqueles vinhos. Para grande surpresa deles, o vinho que pediram no restaurante estava perfeito. Quizeram falar com o gerente a respeito da compra dos vinhos da mansão do triliardário, e o mesmo se mostrou muito satisfeito com a compra que o restaurante tinha feito, sem nem de leve mencionar qualquer problema com aqueles vinhos.
Foram jantar no dia seguinte em outro daqueles restaurantes, e a mesma coisa se repetiu: estava tudo na mais perfeita órdem.
Diante do que para êles era um mistério, começaram a tentar entender o quê tinha acontecido, e finalmente um especialista que acabaram conhecendo esclareceu tudo: "lembram-se que quando venderam os vinhos os compradores disseram que iriam êles mesmos buscar e que vocês não precisavam nem tocar nas garrafas?" Êles se lembravam!
"Pois é… é que êles sabiam que vocês, como advogados, não saberiam lidar com aquêles vinhos tão velhos, e por isso mesmo extremamente sensíveis a manipulação inadequada!"
Estava desfeito o mistério: repartindo as garrafas que sobraram, nem tinham pensado que estavam arruinando o vinho com suas maneiras entusiasmadas e… desastradas.
Fiquei pensando com meus botões: se eu tiver alguma garrafa de vinho muito velha em casa, vou abrí-la o mais cedo possível e beber o vinho, porque com toda certeza não saberei como manipular vinho velho. Foi a minha lição daquela noite. E não me lembro de ter ouvido novamente o meu presidente dando aulas sôbre vinhos…
1 Comments:
At Sat Mar 17, 08:57:00 AM EDT, Artur Maciel said…
Amigo Luiz A.
Encantei-me com sua história sobre vinhos e da lição dada ao seu presidente.
Também aprecio bons vinhos com o hábito de tomá-los semanalmente com o parco conhecimento sobre esse maravilhoso e aconchegante néctar dos deuses.
Quando em ocasiões especiais sou convidado a jantar na casa de amigos, sofro ao perceber que alguns, em momentos solenes, recebem maravilhosos vinhos de presente e, por não terem conhecimento nenhum sobre vinhos, deixam-no de pé em qualquer móvel, meses ou anos a fio, exibindo-os como verdadeiros troféus para um dia abrirem-no num jantar mais solene.
Fico pensando: como seria a terrível surpresa que terão ao provarem um vinho que ficou de pé, na claridade, mesmo sendo de boa safra mas que foi mal acondicionado? Nem quero pensar!
Você demonstrou que, pelas viagens mundo a fora, teve, tem e terá sempre boa convivência com pessoas e vinhos de toda estirpe e nos brindará aqui com histórias maravilhosas.
Grande abraço.
Artur
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