Observador Isento (Unbiased Observer)

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Tuesday, May 19, 2009

Superfaturamentos e outras fraudes

Luiz A. Góes

Sempre que ouço ou leio qualquer coisa relacionada com obras públicas, concorrências para sua execução, empreiteiras, CPI’s para investigar superfaturamentos e irregularidades de toda sorte, lembro-me de algo que me aconteceu bem no começo de minha vida profissional, ainda antes de me formar, e fico pensando como são falhos os contrôles dessas coisas, mesmo quando existem contrôles, e como, geralmente conduzida por parlamentares que no fundo são leigos nos assuntos investigados, - além de ficarem sendo instados de diversas maneiras a nada encontrar, - dificilmente uma CPI pode chegar à apuração dos fatos.
Quando estudante eu vivia dando aulas de matemática, de física, de química e alguns outros temas, a fim de ganhar uns cobres, porque a mesada que meu pai podia me dar era curta e o custo da comida e dos livros não parava de subir. Era uma vida apertada, com tempo integral na faculdade e muitos estudos e trabalhos a levar a efeito fora do horário das aulas, mas mesmo assim eu gastava a maiór parte das horas noturnas dando aulas, quando as conseguia. Dei aulas em cursos e cursinhos, em escolas profissionais de nível médio, - e depois de formado e exercendo a profissão de engenheiro, vi-me em várias ocasiões dando aulas de novo, nos cursos de preparação e treinamento do pessoal destinado à operação da empresa para a qual trabalhava.
Um dos alunos que tive, no tempo de estudante, foi o filho único de um diretor de uma grande empreiteira. Esse diretor era um indivíduo extrangeiro que falava com um sotaque um tanto carregado e morava em bairro muito distante na região de Santo Amaro. Chamou-me para conversar no centro da cidade e disse que queria que eu desse aulas particulares de álgebra, geometria e trigonometria a seu filho, porque estava tendo dificuldade embora fosse bom aluno nas demais matérias de seu curso colegial.
Prontificou-se a esperar por mim no escritório nos dias em que eu fosse dar aulas a seu filho, para levar-me até sua casa, - na volta eu tinha que me contentar em pegar um ônibus que me reconduzisse de volta ao centro da cidade.
No trajeto, íamos sempre conversando sôbre assuntos diversos, dentre os quais os que mais me interessavam eram os relacionados com as atividades profissionais do tal homem, porque era um diretor de uma grande empresa de construções enquanto que eu ainda era um simples estudante de engenharia que nem podia ter certeza de que chegaria a ser engenheiro.
Depois de umas tantas idas à casa de meu aluno, o pai me perguntou como estava o progresso de seu filho. Disse-lhe, meio em tom de brincadeira, que ainda não era suficiente para calcular o perfil de uma barragem, mas que estava progredindo bem. "Em trigonometria?", perguntou êle. Disse-lhe que sim, e para minha surpresa aquele homem perguntou se eu achava trigonometria muito difícil. Respondi-lhe que estudando metodicamente não era tanto quanto podia parecer. Mas a pergunta me intrigou: afinal êle devia estar mais do que habituado com o uso dessa disciplina.
Numa daquelas viagens êle tinha comentado que seu filho era um rapaz inteligente mas dispersivo. Em realidade, achei que meu aluno era mesmo bastante inteligente, mas tinha sua atenção e interêsse voltados para outras coisas, e por isso dedicava pouca atenção à matemática. Pouco antes de eu começar a lhe dar aulas, tinha fabricado nitroglicerina no pequeno laboratório que tinha, entre outras coisas, - em seu enorme quarto de dormir. Ato contínuo, como todo garoto estouvado, provocou, não sei se acidentalmente, a explosão da dita cuja, o que lhe valeu alguns dedos bastante queimados, - felizmente a quantidade de nitroglicerina era pequena.
Mas a perspectiva de ter que repetir o ano fê-lo aplicar-se e acabou aprendendo bem e conseguiu passar nos exames.
Quando eu já me despedia do pai porque ia pela última vez dar aula ao rapaz, tentei ressuscitar o assunto da trigonometria, que tinha me intrigado tanto, e o homem cândidamente se abriu, revelando que, embora fosse êle o responsável pelos cálculos das barragens que sua empresa construia, êles não usavam cálculos muito complicados. Alegou que muito poucos engenheiros eram realmente capazes de efetuar aqueles cálculos (sem especificar se o mesmo acontecia com êle), e que não valia a pena perder tempo com êles, mesmo porque os preços das obras eram por metro cúbico de concreto, ou seja, quanto mais concreto gastassem, mais lucravam. Perguntei-lhe como faziam, e êle me disse que calculavam a largura mínima necessária no pé da barragem e aumentavam mais um bocado, davam uma boa largura no topo, geralmente suficiente para a passagem de dois veículos, e uniam os dois pontos por uma linha reta, de modo que resultava sempre um perfil trapezoidal, muito mais pesado do que o que resultaria de um cálculo acurado, e muito mais fácil de construir, porque não apresentava curvaturas, além de muito mais pesado do que o necessário. Ganhavam no custo do projeto, no custo da execução e no volume faturado. Excelente negócio!
E foi mais além: deu a entender que as concorrências eram mais ou menos com cartas marcadas, e que até o uísque consumido no coquetel que havia por ocasião da assinatura do contrato vinha em garrafas sem sêlo, ou seja, era contrabandeado. Ao fim e ao cabo, nada era controlado.
Isso foi há várias décadas (mais de quarenta anos) : ouvi em silêncio e nada mais comentei, mas nunca me esqueci. Mal sabia então que iria testemunhar (embora geralmente viesse a percebê-lo tardiamente) muitas coisas do gênero, e até mais cabeludas, ao longo de meus anos de engenheiro, - em que aprendi principalmente que aqueles que trabalham para fazer as coisas, para construir, para conseguir resultados, não são os que ganham dinheiro. Só ganham dinheiro aqueles que trabalham "para ganhar dinheiro". Os demais apenas carregam o piano.
É claro que se o dono da barragem fosse um indivíduo ou empresa particular, iria querer auditar o projeto antes do início da execução, e eliminar dele todo excesso desnecessário. Sendo o govêrno o dono da barragem, entretanto, esse tipo de verificação seguramente não ocorre, sendo frequentemente responsável pelo projeto a própria empresa executante. Como é que parlamentares leigos vão chegar a algum resultado significativo num ambiente desses?
A frequência com que os tribunais de contas apontam irregularidades e superfaturamentos em obras públicas leva à conclusão, creio que obrigatória, de que todas as obras públicas, mesmo quando nada é encontrado, contêm irregularidades e deveriam ser rigorosamente auditadas, a começar por uma auditagem técnica desde a fase de projeto: as economias que resultariam seriam astronômicas e, - se os sanguessugas costumeiros deixassem, - talvez nunca mais faltaria dinheiro para a saúde, para a educação, para a defesa, para a segurança e para a aposentadoria dos velhinhos.

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