Observador Isento (Unbiased Observer)

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Friday, June 26, 2009

A arte de mentir

Luiz A. Góes

Estamos vivendo num mundo em que prevalece a máxima invertida segundo a qual "contra argumentos não há fatos". A palavra argumentos está sendo usada, nessa frase, de maneira eufemística para designar mentiras, porque só com mentiras se pode negar fatos. E é nesse mundo de negações, ou de versões fantasiosas de uma realidade frequentemente inexistente que vemos os acontecimentos deixarem de ter acontecido quando alguém resolve negá-los, ou fazer prevalecer em seu lugar uma versão inventada que jamais ocorreu.
Em minhas atividades de consultoria organizacional, que exerci por vários anos, meu trabalho se transformava frequentemente em verdadeira aventura investigativa porque, por mais incrível que pareça, muitas vezes o próprio cliente procurava esconder a verdade dos fatos e apresentava uma versão inverídica, fantasiosa, inverossímil, em seu lugar. Um absurdo, porque o cliente devia ser o maiór interessado em conhecer a verdade a respeito de sua organização, e me enganando impedia que ela viesse à tona.
Muitas poderiam ser as razões para isso, como por exemplo algum tipo de temor não confessado (por exemplo o de eu ser algum agente disfarçado de seus competidores, ou do govêrno), ou porque havia vários sócios e algum deles estaria enganando os demais, ou devido a algum problema familiar inconfessável, e por aí vai.
Diante disso, foi de maneira mais ou menos natural que me acostumei a prestar atenção a detalhes que me indicavam quando as pessoas não estavam dizendo a verdade. Os auditores utilizam técnicas bastante precisas para apurar discrepâncias, por meio de confrontação de números e documentos, e por meio de interrogatórios (ou, se preferirem, de entrevistas), em que os atores da organização frequentemente se contradizem nas informações que prestam. Quando se tem por objetivo apenas mostrar um quadro de discrepâncias e problemas, essas técnicas podem ser satisfatórias, mas quando se objetiva ir mais além e solucionar de imediato os problemas existentes, é preciso conseguir perceber desde logo quando a verdade está sendo negada.
Achei muito interessante uma mensagem que circula pela internet com instruções sôbre como se dectetar uma mentira. Preparada por especialistas, essa mensagem aponta diversos aspectos que eu já tinha detectado na prática, mas deixa ainda margem muito grande a descoberto, a qual é explorada de maneira mais ou menos sistemática pelos praticantes da arte da mentira.
Por quê se mente? Por muitas razões: mente-se por convenção, mente-se por conveniência, mente-se por ambição, mente-se como defesa, mente-se por hábito, mente-se como doença… são numerosas as razões possíveis. Quando somos apresentados a alguém, por exemplo, costumamos dizer "muito prazer" mesmo que não tenhamos prazer nenhum em conhecer essa pessoa: é a mentira social, ou por convenção, usada porque seria muito desagradável expressarmos o contrário. Quem ambiciona alguma coisa, algum cargo, alguma recompensa, costuma esconder de outros que possam ter a mesma ambição informações que possam ajudar esse alguém a conseguir o que se ambiciona em nosso lugar: é a mentira por ambição, seja simplesmente por meio do silêncio ou pela substituição da verdade por alguma inverdade (dizer "não sei" quando se sabe de alguma coisa, por exemplo). Quem fez algum mal-feito costuma ocultar o fato por meio de versões falsas dos acontecimentos: é a mentira como defesa, frequentemente detectada, por exemplo, nas côrtes de justiça.
Mas existem pessoas que mentem por simples hábito: em situações em que a mentira seria totalmente desnecessária ou inútil, em que não traria qualquer benefício a quem a pratica, vemos frequentemente as pessoas mentirem de maneira muitas vezes evidente, sem se aperceberam do ridículo em que se colocam ao fazê-lo. Muitas dessas pessoas mentem por razões emocionais: diante de assuntos que lhes tocam emocionalmente, preferem mentir a aceitar simplesmente a verdade factual, mesmo se expondo a serem desmascaradas ou a ficarem desacreditadas perante os circunstantes. Os psicólogos conhecem bem o mecanismo conhecido como "negação", que se manifesta quando uma pessoa não consegue, por razões emocionais, enfrentar a verdade dos fatos, e por isso os nega, ou produz alguma versão inverossímil dos mesmos. Esse mecanismo tem muitas nuances, mas é, em última análise, sempre o mesmo.
Geralmente a pessoa que adquire o hábito de mentir costuma, em sua vida diária, praticar outros delitos, mesmo que sejam apenas pecadilhos menores, coisas que costumam passar despercebidas, mas que não deixam de constituir transgressões às boas maneiras ou às convenções socialmente aceitáveis. E é muito difícil estabelecer-se o limite entre esse universo de mentirosos por hábito de um outro, o dos mentirosos em resultado de uma desordem mental conhecida como mitomania, desordem essa que compele a pessoa a mentir constantemente: talvez isso lhe cause prazer.
Quem mente sempre espera, evidentemente, que se acredite em sua mentira. E mentira gera mentira, porque assim como se mente para esconder um mal feito, também se mente para esconder ou justificar outra mentira: a coisa tende a se tornar uma bola de neve, que quando rola cresce constantemente. Essas pessoas consideram-se, segundo entendo, mestras na arte de mentir, arte essa em que se esmeram cada vez mais à medida em que se convencem de que suas mentiras vão sendo aceitas como verdades.
Por quê mentiras não são desmascaradas sempre que percebidas? Pode-se responder a essa questão de muitas maneiras, conforme o caso: como o ônus da prova cabe a quem acusa, frequentemente a mentira não é contraditada, embora plenamente percebida, porque não traria vantagem a quem a detecta, ou lhe traria apenas o trabalho de fazê-lo, além de eventuais desvantagens ou dissabores. Esse tipo de situação é muito mais frequente do que se pensa, mesmo porque apenas naqueles casos em que se faz absolutamente necessário contraditar alguém que mente se o faz: evitar incidentes desagradáveis, bate-bocas ou perturbações a terceiros são os motivos mais frequentes para isso.
Chega a ser muitas vezes engraçado, porque quem mente sabe que sua mentira não foi tida como verdade, e quem a ouviu sabe que ouviu uma mentira: trata-se de um jogo de faz-de-conta, o mentiroso ficando firme em sua mentira, e os ouvintes ficando firmes em fingirem que acreditaram. Quer dizer: para que a arte da mentira possa ser praticada, é preciso que todos os atores participem desse jogo, uns mentindo e outros fingindo que acreditam. E assim vamos vivendo num mundo de faz-de-conta.

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