Deu o burro
Luiz A. Góes
Boa parte de minha meninice foi passada em duas casas em que residimos na Vila Romana, em São Paulo. A primeira delas ficava num conjunto de casas geminadas na Rua Spartaco.
Quando nos mudamos para lá, depois de termos morado alguns anos naquele ainda então remoto Alto da Lapa, a Rua Spartaco era uma das principais do bairro, a única rua calçada pela qual não trafegava ônibus. Numa das esquinas do quarteirão havia um bar cujos donos eu nunca soube bem quem eram. Na esquina em frente havia uma padaria e confeitaria de uns portugueses dos Açores. Lá na outra ponta havia uma loja de armarinhos de um velhinho libanês no lado de cá, e um armazém de secos e molhados daqueles antigos de uma família de japoneses no lado de lá.
Os portugueses eram bem falantes e amistosos. O velhinho libanês era pachorrento e ficava horas a fio sentado numa cadeira na calçada à porta de sua loja, sòzinho, sem falar com ninguém, apenas apreciando o parco movimento da rua. O japonês dono do armazém era um tipo meio engraçado que gostava de mandar aqueles cartões postais com piadas para os amigos no Natal. Não os assinava, apenas escrevia no verso: "Feriz Natal": todo mundo adivinhava na hora quem tinha mandado..
Virando a esquina do bar, na rua Tito, havia uns estabelecimentos meio esquisitos que minha mãe e meu pai recomendavam veementemente evitar até mesmo passar em frente. Com o tempo vim a aprender que um deles era uma espécie de oficina mecânica que de vêz em quando consertava veículos, ainda um tanto raras naquela época porque no quarteirão inteiro havia apenas um automóvel, uma baratinha daquelas antigas que o porta-malas se abria para revelar um assento extra para duas pessoas. E ninguém mais tinha automóvel pela redondeza que a gente soubesse. Aliás, pouquíssimas eram as casas no bairro que tinham garage.
Os sujeitos da tal oficina viviam constantemente bebendo no bar e meu pai os considerava uns bêbados desqualificados.
Um outro estabelecimento era ainda mais esquisito: vim a descobrir, depois de muito tempo, que era um sucateiro de papéis e papelões. Não por acaso estava ali, pois no quarteirão contíguo, quase em frente à padaria e confeitaria, encontrava-se a entrada principal da Companhia Melhoramentos, fabricante de papéis e editora de livros. Foi devido à proximidade da Companhia Melhoramentos que vim a conhecer Oswaldo Storni, o memorável desenhista que lá trabalhava ilustrando livros infantis, que me entronizou na arte do desenho e da pintura e que, por vias travessas, me colocou no caminho da profissão de engenheiro, mercê de uma oportunidade que me foi oferecida, através dele, para trabalhar como desenhista num escritório de engenharia.
Entre o armazém de secos e molhados e a casa do tal sujeito que tinha a baratinha, havia um par de casas também geminadas, e descobrimos que numa delas havia uma mulher que era "corretora zoológica", fazia o jogo do bicho. Nós ouvíamos falar no assunto, mas ninguém de nossa casa tinha jamais ido até lá, até que um dia minha avó veio nos visitar e, como era louca por uma fezinha, foi logo perguntando se não havia algum lugar para jogar no bicho por perto.
"Vai, bichinho, fazer um joguinho para a vovó. Sonhei com uma mulher muito gorda: hoje vai dar a vaca!" E não é que dava mesmo? Os sonhos de minha avó pareciam infalíveis, mas ela jogava pouquinho, dava apenas para ter a alegria de ganhar uns tostões no final do dia.
Só que nessas visitas aprendi que todo mundo, ou quase, nas redondezas, jogava no bicho, porque de manhã a casa da tal mulher tinha um movimento danado. Uns quarteirões mais abaixo havia uma delegacia de polícia, mas nunca sequer pensamos que a presença dela pudesse representar qualquer problema para aquela distração.
Um dia o vizinho da casa pegada à padaria e confeitaria comprou um caminhão. Como não havia garage, o diabo do caminhão ficava estacionado na rua, quase em frente à nossa casa. À noite, logo depois do jantar, - ainda não havia televisão, - os rapazes e moças do quarteirão costumavam se reunir para conversar e fazer pequenas brincadeiras. Eu, que era bastante crescido para a idade, dava um jeito de participar daqueles encontros, embora fosse bem mais novo do que todos os demais.
O tal caminhão veio estragar um pouco aquelas horas agradáveis, porque ficava bem no meio do caminho. Mas logo inventamos uma utilidade para êle: havia umas brincadeiras em que o perdedor tinha que cumprir uma espécie de castigo ou pena, e uma das penas que inventamos foi dar um certo número de voltas em torno do caminhão…
A Rua Spartaco já era calçada e também iluminada, ao contrário das demais, porque bem lá no topo da subida, no final dela, havia, - e ainda há, - um hospital, único da região naquela época. A maior comoção no bairro era quando alguma ambulância subia a rua com a sereia tocando em disparada. Mas geralmente o pedaço era bastante calmo, até mesmo modorrento durante boa parte do dia, ficando mais movimentado nos horários de entrada e saída dos empregados da Companhia Melhoramentos. Quem não trabalhava nela descia a rua a pé para tomar um ônibus alguns quarteirões mais abaixo e ir trabalhar em bairros mais próximos do centro ou na Lapa.
Um dia correu o boato de que o dono da oficina mecânica tinha comprado um automóvel que estava consertando para êle mesmo. Dei um jeito de ir dar uma espiada e vi que se tratava de um carro meio grande mas aparentemente bem velho, que ficou estacionado em frente à tal oficina sem se mover por muito tempo. É que o tal carro estava em realidade sendo reconstruido…
Numa tarde de domingo ouvimos repentinamente um enorme estrondo que não sabíamos de onde vinha. Minha mãe perguntou por cima do muro do quintal se a vizinha sabia de alguma coisa, e ela também estava alarmada porque não sabia do que se tratava. Percorremos depressa a casa em direção à porta da frente, e ao abrí-la vimos que havia uma aglomeração da vizinhança junto ao caminhão do vizinho da frente e ao tal carro do dono da oficina, que estava no meio da rua fumegando e com o pára-brisa quebrado. O caminhão estava com a ponta trazeira de sua carroceria quebrada, e o automóvel tinha a lateral bem amassada.
Não foi muito difícil de entender que o automóvel havia se chocado contra a trazeira do caminhão depois de virar a esquina atabalhoadamente. Parece que o tal mecânico tinha colocado o dito cujo em condições de trafegar, deu-lhe partida mas se esqueceu de verificar os freios, de modo que, tendo ganho velocidade, foi incapaz de brecar quando viu o caminhão à sua frente depois de fazer a curva sem reduzir nem um pouco a velocidade.
O coitado estava meio atordoado e com cara de desapontado tentando explicar ao pessoal o que havia acontecido, enquanto se formava uma espécie de conferência muito peculiar do pessoal, discutindo se no dia seguinte deviam jogar no número da chapa do carro ou no da chapa do caminhão. Uns defendiam o número da chapa do carro, que havia causado o acidente, enquanto que outros diziam que o caminhão estacionado alí é que havia sido o causador de tudo. E discutiam mais, se deviam jogar nos finais ou em todas as combinações possíveis dos números, etc, etc.
Eu não entendia nada daquilo, - os joguinhos de minha avó eram os mais simples possível e eu apenas ia levar o dinheiro da aposta e buscar o resultado no fim do dia sem interferir na formulação da aposta, - de modo que fiquei escutando curioso, e no dia seguinte tratei de ir perguntar na padaria quem havia ganho.
O simpático açoreano disse que pelo jeito ninguém, porque até àquela hora, - já eram umas seis da tarde, - não tinha ouvido nada.
Mais um pouco formou-se uma roda de discussão na porta do bar e minutos depois o pessoal começou a se dirigir para a outra ponta do quarteirão. Fui atrás e vi quando bateram na porta da loja de armarinhos que já estava fechada. O velhinho libanês veio abrir e ficou meio atônito diante daquele grupo numeroso que aparentemente jamais lhe havia antes dirigido a palavra.
O mais enfezado deles perguntou: "Quê número o senhor jogou?" O velhinho respondeu que em vários, enumerando alguns, e o outro continuou, meio zangado: "Porquê o senhor jogou nesses números? O senhor achou que o mecânico é um burro? Êle estava era bêbado…"
O velhinho começou a ficar mais descontraído e risonho, respondendo em tom de galhofa: "Eu vi o acidente e vi o que o causou: tinha que jogar no burro."
O pessoal ficou mudo olhando para êle, que acrescentou: "Eu estava sentado na frente da loja, e como era domingo não tinha ninguém passando. De repente apareceu um burro solto que foi andando lá para o fim do quarteirão bem no meio da rua. Quando o carro virou a esquina teve que desviar do burro e bateu no caminhão. O burro saiu correndo e sumiu, mas eu vi que foi isso. Foi o burro que causou o acidente."
O pessoal começou a caminhar de volta, agora discutindo porquê aquele palhaço do mecânico não tinha nem sido capaz de dizer que havia topado com um burro no meio da rua…
Boa parte de minha meninice foi passada em duas casas em que residimos na Vila Romana, em São Paulo. A primeira delas ficava num conjunto de casas geminadas na Rua Spartaco.
Quando nos mudamos para lá, depois de termos morado alguns anos naquele ainda então remoto Alto da Lapa, a Rua Spartaco era uma das principais do bairro, a única rua calçada pela qual não trafegava ônibus. Numa das esquinas do quarteirão havia um bar cujos donos eu nunca soube bem quem eram. Na esquina em frente havia uma padaria e confeitaria de uns portugueses dos Açores. Lá na outra ponta havia uma loja de armarinhos de um velhinho libanês no lado de cá, e um armazém de secos e molhados daqueles antigos de uma família de japoneses no lado de lá.
Os portugueses eram bem falantes e amistosos. O velhinho libanês era pachorrento e ficava horas a fio sentado numa cadeira na calçada à porta de sua loja, sòzinho, sem falar com ninguém, apenas apreciando o parco movimento da rua. O japonês dono do armazém era um tipo meio engraçado que gostava de mandar aqueles cartões postais com piadas para os amigos no Natal. Não os assinava, apenas escrevia no verso: "Feriz Natal": todo mundo adivinhava na hora quem tinha mandado..
Virando a esquina do bar, na rua Tito, havia uns estabelecimentos meio esquisitos que minha mãe e meu pai recomendavam veementemente evitar até mesmo passar em frente. Com o tempo vim a aprender que um deles era uma espécie de oficina mecânica que de vêz em quando consertava veículos, ainda um tanto raras naquela época porque no quarteirão inteiro havia apenas um automóvel, uma baratinha daquelas antigas que o porta-malas se abria para revelar um assento extra para duas pessoas. E ninguém mais tinha automóvel pela redondeza que a gente soubesse. Aliás, pouquíssimas eram as casas no bairro que tinham garage.
Os sujeitos da tal oficina viviam constantemente bebendo no bar e meu pai os considerava uns bêbados desqualificados.
Um outro estabelecimento era ainda mais esquisito: vim a descobrir, depois de muito tempo, que era um sucateiro de papéis e papelões. Não por acaso estava ali, pois no quarteirão contíguo, quase em frente à padaria e confeitaria, encontrava-se a entrada principal da Companhia Melhoramentos, fabricante de papéis e editora de livros. Foi devido à proximidade da Companhia Melhoramentos que vim a conhecer Oswaldo Storni, o memorável desenhista que lá trabalhava ilustrando livros infantis, que me entronizou na arte do desenho e da pintura e que, por vias travessas, me colocou no caminho da profissão de engenheiro, mercê de uma oportunidade que me foi oferecida, através dele, para trabalhar como desenhista num escritório de engenharia.
Entre o armazém de secos e molhados e a casa do tal sujeito que tinha a baratinha, havia um par de casas também geminadas, e descobrimos que numa delas havia uma mulher que era "corretora zoológica", fazia o jogo do bicho. Nós ouvíamos falar no assunto, mas ninguém de nossa casa tinha jamais ido até lá, até que um dia minha avó veio nos visitar e, como era louca por uma fezinha, foi logo perguntando se não havia algum lugar para jogar no bicho por perto.
"Vai, bichinho, fazer um joguinho para a vovó. Sonhei com uma mulher muito gorda: hoje vai dar a vaca!" E não é que dava mesmo? Os sonhos de minha avó pareciam infalíveis, mas ela jogava pouquinho, dava apenas para ter a alegria de ganhar uns tostões no final do dia.
Só que nessas visitas aprendi que todo mundo, ou quase, nas redondezas, jogava no bicho, porque de manhã a casa da tal mulher tinha um movimento danado. Uns quarteirões mais abaixo havia uma delegacia de polícia, mas nunca sequer pensamos que a presença dela pudesse representar qualquer problema para aquela distração.
Um dia o vizinho da casa pegada à padaria e confeitaria comprou um caminhão. Como não havia garage, o diabo do caminhão ficava estacionado na rua, quase em frente à nossa casa. À noite, logo depois do jantar, - ainda não havia televisão, - os rapazes e moças do quarteirão costumavam se reunir para conversar e fazer pequenas brincadeiras. Eu, que era bastante crescido para a idade, dava um jeito de participar daqueles encontros, embora fosse bem mais novo do que todos os demais.
O tal caminhão veio estragar um pouco aquelas horas agradáveis, porque ficava bem no meio do caminho. Mas logo inventamos uma utilidade para êle: havia umas brincadeiras em que o perdedor tinha que cumprir uma espécie de castigo ou pena, e uma das penas que inventamos foi dar um certo número de voltas em torno do caminhão…
A Rua Spartaco já era calçada e também iluminada, ao contrário das demais, porque bem lá no topo da subida, no final dela, havia, - e ainda há, - um hospital, único da região naquela época. A maior comoção no bairro era quando alguma ambulância subia a rua com a sereia tocando em disparada. Mas geralmente o pedaço era bastante calmo, até mesmo modorrento durante boa parte do dia, ficando mais movimentado nos horários de entrada e saída dos empregados da Companhia Melhoramentos. Quem não trabalhava nela descia a rua a pé para tomar um ônibus alguns quarteirões mais abaixo e ir trabalhar em bairros mais próximos do centro ou na Lapa.
Um dia correu o boato de que o dono da oficina mecânica tinha comprado um automóvel que estava consertando para êle mesmo. Dei um jeito de ir dar uma espiada e vi que se tratava de um carro meio grande mas aparentemente bem velho, que ficou estacionado em frente à tal oficina sem se mover por muito tempo. É que o tal carro estava em realidade sendo reconstruido…
Numa tarde de domingo ouvimos repentinamente um enorme estrondo que não sabíamos de onde vinha. Minha mãe perguntou por cima do muro do quintal se a vizinha sabia de alguma coisa, e ela também estava alarmada porque não sabia do que se tratava. Percorremos depressa a casa em direção à porta da frente, e ao abrí-la vimos que havia uma aglomeração da vizinhança junto ao caminhão do vizinho da frente e ao tal carro do dono da oficina, que estava no meio da rua fumegando e com o pára-brisa quebrado. O caminhão estava com a ponta trazeira de sua carroceria quebrada, e o automóvel tinha a lateral bem amassada.
Não foi muito difícil de entender que o automóvel havia se chocado contra a trazeira do caminhão depois de virar a esquina atabalhoadamente. Parece que o tal mecânico tinha colocado o dito cujo em condições de trafegar, deu-lhe partida mas se esqueceu de verificar os freios, de modo que, tendo ganho velocidade, foi incapaz de brecar quando viu o caminhão à sua frente depois de fazer a curva sem reduzir nem um pouco a velocidade.
O coitado estava meio atordoado e com cara de desapontado tentando explicar ao pessoal o que havia acontecido, enquanto se formava uma espécie de conferência muito peculiar do pessoal, discutindo se no dia seguinte deviam jogar no número da chapa do carro ou no da chapa do caminhão. Uns defendiam o número da chapa do carro, que havia causado o acidente, enquanto que outros diziam que o caminhão estacionado alí é que havia sido o causador de tudo. E discutiam mais, se deviam jogar nos finais ou em todas as combinações possíveis dos números, etc, etc.
Eu não entendia nada daquilo, - os joguinhos de minha avó eram os mais simples possível e eu apenas ia levar o dinheiro da aposta e buscar o resultado no fim do dia sem interferir na formulação da aposta, - de modo que fiquei escutando curioso, e no dia seguinte tratei de ir perguntar na padaria quem havia ganho.
O simpático açoreano disse que pelo jeito ninguém, porque até àquela hora, - já eram umas seis da tarde, - não tinha ouvido nada.
Mais um pouco formou-se uma roda de discussão na porta do bar e minutos depois o pessoal começou a se dirigir para a outra ponta do quarteirão. Fui atrás e vi quando bateram na porta da loja de armarinhos que já estava fechada. O velhinho libanês veio abrir e ficou meio atônito diante daquele grupo numeroso que aparentemente jamais lhe havia antes dirigido a palavra.
O mais enfezado deles perguntou: "Quê número o senhor jogou?" O velhinho respondeu que em vários, enumerando alguns, e o outro continuou, meio zangado: "Porquê o senhor jogou nesses números? O senhor achou que o mecânico é um burro? Êle estava era bêbado…"
O velhinho começou a ficar mais descontraído e risonho, respondendo em tom de galhofa: "Eu vi o acidente e vi o que o causou: tinha que jogar no burro."
O pessoal ficou mudo olhando para êle, que acrescentou: "Eu estava sentado na frente da loja, e como era domingo não tinha ninguém passando. De repente apareceu um burro solto que foi andando lá para o fim do quarteirão bem no meio da rua. Quando o carro virou a esquina teve que desviar do burro e bateu no caminhão. O burro saiu correndo e sumiu, mas eu vi que foi isso. Foi o burro que causou o acidente."
O pessoal começou a caminhar de volta, agora discutindo porquê aquele palhaço do mecânico não tinha nem sido capaz de dizer que havia topado com um burro no meio da rua…
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