Observador Isento (Unbiased Observer)

A space for rational, civilized, non-dogmatic discussion of all important subjects of the moment. - Um espaço para discussão racional, civilizada, não dogmática de todos os assuntos importantes do momento.

Monday, May 28, 2007

Dor de cotovelo

Luiz A. Góes
De repente, sem qualquer explicação, o Everaldo estava demitido. Falou com o Leandro, disse que não entendia porquê e não se conformava. Não era empregado dos mais brilhantes, mas era, tanto quanto o Leandro sabia até então, considerado esforçado e leal, fazia parte do grupo considerado de confiança. Não tinha tido qualquer problema ou desavença, ninguém tinha se queixado de seu trabalho, enfim, um mistério.
Alguns dias mais tarde, outro empregado antigo foi demitido, e novamente ficaram todos sem entender o quê havia motivado a demissão. Tinham recentemente passado por algumas fases complicadas, tiveram que demitir um gerente de produção, e mais adiante um bom número de pessoas por causa de um movimento grevista ilegal que articularam, mas aquelas demissões repentinas eram inexplicadas, não tinham motivo aparente.
Esse segundo caso despertou, não se sabe nem porquê, a curiosidade do Leandro, até mesmo porque êle começou a se lembrar de algumas outras demissões de pessoas do escritório, todos homens e alguns com responsabilidade de família, que haviam ocorrido em passado não muito distante.
Ficou curioso especificamente a respeito do autor daqueles atos: o Jardel era um dos donos da empresa, evidentemente tinha poder para tanto, mas costumava consultá-lo quando tinha que tomar alguma decisão fora de rotina, ou pelo menos comunicava quando tomava alguma decisão um pouco diferente, geralmente dando alguma explicação razoável.
Aquilo era intrigante: o Leando não conseguiu atinar com qualquer causa aparente, e não se atreveu a indagar, porque se tratava de atos já consumados. De qualquer maneira não adiantaria nada e podia criar algum ponto de atrito que gostaria de evitar.
Um belo dia o pessoal do escritório resolveu, ao sair do trabalho, ir para um barzinho ou coisa que o valha para comemorar alguma coisa sem importância, mera desculpa, como costumavam fazer de vêz em quando. Estavam todos reunidos lá no pátio, e de repente um deles, o chefe do departamento de pessoal, voltou lá para dentro e convidou o Leandro para participar daquela comemoração. Êle achou que talvez fosse inconveniente, agradeceu o convite, desculpou-se e não foi.
No dia seguinte havia um zum-zum, fácil adivinhar que comentavam o dia anterior. Uma funcionária levou ao Leandro um papel qualquer para assinar, e êle, enquanto o fazia, comentou: "O passeio de ontem deve ter sido bom…", ao que ela retrucou: "Não deu pra mim ir…" Êle achou curioso, - tanto a resposta quanto a agressão ao vernáculo, - mas logo esqueceu o assunto.
Dias depois, terminando o que tinha a fazer, Leandro vestiu o paletó, apanhou sua pasta de papéis e se dirigiu ao estacionamento. Notou então a presença de um automóvel de bom nível novinho em folha, que não tinha visto ali até então. Ficou pensando com meus botões de quem seria: algum empregado? Pouco provável, mas não conseguiu se lembrar de ter visto nenhum visitante antes de sair.
Sem parar para pensar, deu partida e saiu da fábrica, dando o dia por encerrado.
No dia seguinte, vendo o carro novinho em folha novamente estacionado, lembrou-se e ficou ainda mais curioso, mas os afazeres do dia logo tomaram sua atenção e deixou de pensar no assunto.
Naquele dia o Jardel informou, pouco antes do almoço, que tinha algo a fazer e não iria almoçar com a turma habitual. Costumavam, os diretores e um pequeno grupo mais chegado à diretoria, almoçar juntos quase todos os dias, - apenas vêz ou outra alguém deixava de aparecer porque tinha alguma outra coisa a fazer.
Mas naquele dia o Quinzinho, - funcionário antigo e integrante do chamado grupo de confiança, inclusive com certo parentesco com um dos acionistas - fêz um pequeno comentário que ficou fazendo cócegas na cachola do Leandro: "Acho que desta vêz vai…" Não entendeu imediatamente, mas durante o almoço o Leandro começou a se lembrar de que o Jardel havia se esquivado de almoçar com o grupo várias vêzes nas últimas semanas.
Na volta do almoço, estacionando o automóvel, estacionou ao lado, logo em seguida, o Jardel, que também retornava, com uma cara feliz. "Tudo bem?" "Tudo!", respondeu, sem maiores comentários. Quando deixavam o estacionamento, o Leandro vislumbrou o tal carro novinho em folha que entrava na outra ponta, junto ao portão. Tentou andar mais de vagar para ver quem seria, mas o Jardel começou a falar de algum assunto, e assim não deu para satisfazer sua curiosidade, porque foram caminhando e deram as costas para o estacionamento..
A época era de negócios difíceis, com forte retração do mercado, e o apêrto era grande. Começavam a falar em uma redução da folha, e a enumerar as pessoas que poderiam ser dispensadas com uma reformulação de funções. O Leandro ficou com a impressão de que o Jardel discordava dos nomes que êle e o Quinzinho sugeriam por pura teimosia, porque em alguns casos a escolha era bastante evidente, - mas apenas registrou aquilo na cabeça, sem comentar. Depois de tortuosas conversas, chegaram mais ou menos à lista dos nomes a considerar.
Saindo do escritório uma tarde, ao se aproximar do automóvel no estacionamento, Leandro viu estacionado bem ao lado do seu o tal automóvel novinho em folha, e dentro dele, com o motor ligado e começando a dar marcha-a-ré, a tal funcionária que não tinha podido ir à festa.
Era evidente que aquele automóvel era incompatível com o salário que ela ganhava. Devia ter sido presente de um papai abastado, de algum parente rico, quem sabe um marido que havia sido promovido… Mas no trajeto até sua casa ficou pensando no assunto, pois não fazia sentido: por quê razão uma pessoa que podia ter um automóvel daqueles tinha que trabalhar naquela fábrica fazendo o que fazia, - simples auxiliar de escritório, - ainda mais que se tratava de pessoa que nem falar razoàvelmente sabia, embora fosse um bocado vistosa, - tinha muito boa estampa.
No dia seguinte, num lampejo de intuição, Leandro perguntou ao chefe do departamento de pessoal quais dos funcionários do escritório eram casados, ou por outra, quais eram solteiros, porque, como êle sabia, estavam num processo de redução de folha e êle gostaria, se possível, de poupar os casados. O chefe do departamento de pessoal começou a enumerar os solteiros, entre êles a tal funcionária do carro novo. Informação importante, porque colocava em questão o tal carro novo, - e caro, diga-se de passagem: evidentemente não tinha sido dado pelo pai. Mas logo em seguida veio uma informação adicional que naquele momento aumentou ainda mais o mistério: a dita funcionária estava de saída, havia sido demitida, - estava cumprindo o aviso prévio da empresa. Por órdem de quem? Do Jardel! Ela devia estar transtornada, comentou o Leandro, mas o chefe de pessoal disse que não, pelo contrário parecia até estar mais alegre, disse estar montando um salão de beleza e ia aproveitar o dinheiro do fundo de garantia…
Voltando à sua sala, ocorreu ao Leandro dar uma nova olhada na lista de demissões. Do pessoal do escritório nela incluido, embora fossem relativamente poucos, a quase totalidade era do sexo masculino. Engraçado! E aquela demissão intempestiva da funcionária, a quê se deveria, se nem estava na lista?
Sentiu, sem saber porquê, que podia estar pisando em terreno pouco firme, de modo que resolveu manter olhos e ouvidos ligados para captar quaisquer sinais que pudessem ajudar a decifrar o enigma.
Foi mais ou menos nessa época que começaram certos questionamentos de coisas que o Leandro havia feito no passado, embora nenhum dos sócios tivesse se manifestado a respeito quando elas foram feitas. Foram decisões a respeito de organização de fábrica, algumas promoções de funcionários, coisas relacionadas com política de produtos ou de vendas, enfim, parecia que de repente estava dando uma dor de barriga qualquer nos acionistas principais, servindo o Jardel sempre de porta-vóz. Situação estranha, porque o Leandro tinha sempre encontrado pleno apôio a todas as decisões importantes que tomava, - e até mesmo porque costumava expô-las a discussão antes de concretizá-las. Era evidente que aqueles questionamentos serviam de pretexto para alguma outra coisa, mesmo porque quando manifestara a intenção de deixar a empresa, não fazia muito tempo, para aproveitar uma oportunidade que lhe tinha surgido, êles fizeram intensas manobras para impedir sua saída. Curiosamente o Jardel tinha sido o porta-vóz dos acionistas naquela oportunidade também.
Qualquer que fosse a razão, pensou êle, era irrelevante. Tudo indicava que teria que deixar o emprêgo, porque só podia continuar nele com pleno apôio dos acionistas principais. Assim, começou a pensar em seu próprio futuro e a deixar de se preocupar tanto com o dia-a-dia da empresa. Passou a sair para almoçar com outras pessoas de interêsse para meus planos futuros, a participar menos de conversas com o pessoal, e a dedicar mais tempo a pensar e analisar as situações.
Paradoxalmente foi esse afastamento, até certo ponto intencional, que lhe deu a chave do mistério. Começou a rememorar certas coisas, como a demissão do Everaldo e várias outras. Solteiro, o Everaldo era boa pinta, tipo namorador, mas discreto. Sua única indiscrição, lembrou-se, êle a ouvira do Quinzinho, - sempre o Quinzinho, - que parecia saber de tudo. E foi de maneira indireta: uma telefonista recém-contratada estava sendo cobiçada por várias pessoas, segundo comentários que se ouvia aqui e ali. O Quinzinho, com seu ar de filósofo nas horas vagas, comentou a boca pequena: "Imagine que essa moça se deixou fotografar no motel pelo Everaldo…"
Havia as outras demissões, igualmente inexplicadas, e agora essa implicância infundada e extemporânea. No fim do dia, depois de muito pensar, dirigiu-se ao estacionamento e, ao entrar em seu carro, percebeu que se aproximava o Jardel, dirigindo-se ao carro dele. Aparentemente não notou sua presença, porque em dado momento parou, como se esperasse por alguém, que era… nada mais, nada menos do que a funcionária do carro novo. Ouviu quando disse: "Venha me seguindo…" E em seguida cada um saiu em seu automóvel, ela o seguindo por longo trajeto, como observou por ter saido logo depois.
A ligação entre os dois tornou-se evidente. Leandro sabia que o Jardel era divorciado e aquela constatação começou a abrir como que por encanto a fechadura do mistério.
No dia seguinte conseguiu do Quinzinho a confirmação, em jeitosa conversa, tendo êle revelado que o Jardel estava namorando a moça e pretendia casar-se com ela. Tudo se encaixava: o carro novo, - sem dúvida dado por êle, - a demissão para que ela recebesse o fundo de garantia por tempo de serviço, a montagem do salão de beleza… Se bem que essa idéia do salão de beleza não fazia muito sentido, dadas as características da pessoa e as circunstâncias que se desenhariam se realmente ocorresse a união.
Refletindo, ocorreu ao Leandro que o Jardel podia estar fazendo uma espécie de queima de arquivos: pelo sim ou pelo não, demitia todos aqueles que pudessem, mesmo que só em sua imaginação, ter estado envolvidos com a sua futura esposa, fosse porque sabia de alguma coisa ou a fim de não ter testemunhas no futuro. Ou seja, iria demitir todos os funcionários contemporâneos dela naquele escritório. Seria inútil e até mesmo ridículo fazer qualquer tentativa de esclarecer o assunto, sem dúvida, face à irracionalidade da coisa: deixou a empresa na semana seguinte, embora penalizado com a situação de uns tantos que iam ser postos na rua por uma bobagem e, ainda por cima, sob o comando de uma dor de cotovelo.

1 Comments:

  • At Fri Jun 15, 11:53:00 AM EDT, Blogger Artur Maciel said…

    Tudo isso ainda é pouco, se comparado a casos escabrosos que ocorrem nas empresas no dia-a-dia. Se se passar um pente fino em alguns casos - semelhantes ao presente - ver-se-á que muita empresa perde seus empregados por 'dores de cotovêlo', prejudicando muitos competentes e que fariam a diferença dentro do quadro de funcionários.

     

Post a Comment

<< Home