Observador Isento (Unbiased Observer)

A space for rational, civilized, non-dogmatic discussion of all important subjects of the moment. - Um espaço para discussão racional, civilizada, não dogmática de todos os assuntos importantes do momento.

Monday, May 28, 2007

Meu Amigo Silvino

Luiz A. Góes
Tive um amigo chamado Silvino. Tinha um nome comprido, mas o primeiro nome era suficiente.
Viveu uma vida longa e aventurosa, que acabou contando em livro. Não tinha recebido muita educação formal, mas era portador de boa bagagem de conhecimentos e tinha boa cultura geral, além de conhecer bastante o mundo.
Quando o conheci, há uns bons trinta anos, já na casa dos oitenta, estava às voltas com a revisão do livro, porque o candidato a editor havia se queixado de êle não ter incluido nenhuma de suas emoções em todo o texto, e era principalmente as emoções, na visão do tal editor, que o público queria ver.
Deu-me um pouco de trabalho o Silvino, com sua teimosia e sua maneira sistemática de ser. Do alto dos seus oitenta anos, e apesar de eu lhe ter dito várias vêzes que não se incomodasse com o horário, - principalmente no inverno, penoso para todos e sem dúvida ainda mais para êle, - comparecia todas as manhãs, ia para a sua sala e lá permanecia, se não surgia alguma coisa que o tirasse de lá antes, até o meio-dia em ponto.
Um dia apareceu pálido como um papél, bastante abatido e, pela primeira vêz, atrasado. Eu e a secretária o interrogamos, e êle acabou confessando, depois de ficar firme e bancar o durão por alguns minutos, que havia levado um tombo ao sair de casa. Era inverno, havia gelo, e os dois pés resolveram sair do chão ao mesmo tempo sem avisá-lo, disse êle.
Continuamos o interrogatório e êle acabou dizendo que havia caido com as costas no chão. Com oitentinha nas ditas cujas, aquilo era preocupante: fizemos com que tirasse o capote e o paletó, para constatar que êle estava com os cotovelos sangrando. Recusou-se a deixar ver-lhe as costas, e também não quiz saber de ir a um médico ou pronto-socorro. Enquanto a secretária correu para buscar a maleta de primeiros socorros e fazer uns curativos, perguntei porquê não tinha ficado em casa, voltado para dentro e pedido à mulher que cuidasse dele. Respondeu que não iria acordá-la àquela hora, não podia incomodá-la porque era a única mulher que tinha...
Ao meio dia em ponto, como eu ia dizendo, batia à minha porta, - ou melhor, diretamente à minha mesa, porque a porta ficava aberta e êle ia entrando, - e dizia que estava na hora. Êle foi o responsável por eu ter ganho um bocado de quilos enquanto convivemos naquele escritório, porque nunca dispensava um almoço completo, com martini bem seco de aperitivo, e uma fatia de torta de maçã na sobremesa acompanhada de uma xícara de chá. O martini mantinha o sistema circulatório em órdem, justificava. A torta de maçã tinha funções digestivas, e o chá era para evitar dispepsia. Nunca discuti nada disso com êle: sempre aceitei esses conceitos tàcitamente.
Acostumei-me a acompanhá-lo no almoço, sempre que não tinha algum outro compromisso - na segunda-feira comia-se em qualquer lugar, mas na terça era dia de comer comida chinesa, na quarta comida brasileira, geralmente um arremedo de feijodada (apezar da sofrível qualidade, num arremedo de restaurante brasileiro que havia naquela época em New York), a quinta era dia de ravioli, e a sexta ficava também a gosto do palpite que surgisse. Êle conhecia uns mocós baratinhos, o que amenizava o custo da coisa, embora algumas vêzes a gente tivesse que andar um pouco.
Alguns desses mocós não cumpriam com todos os requisitos, - uns não tinham licença para bebidas alcoólicas, outros não tinham torta de maçã que prestasse, - e a gente tinha que parar no caminho para comprar essas coisas antes de chegar ao destino. Quando se tratava de tomar o martini no meio do caminho, a coisa ficava meio complicada porque o resto da caminhada êle ia meio se escorando em mim, para só voltar ao normal depois de comer bem, degustar a sua torta de maçã e tomar o seu chá.
À medida que ia fazendo a revisão do livro, - que veio a publicar quando eu já estava quase de saída de lá, - o Silvino ia me contando a sua vida, tudo o que havia no livro, e de quebra me contava aquelas coisas que, na visão dele, não podiam aparecer no livro porque "não seria de bom tom". Fêz muitas confidências, mas nunca apareceu nada que se pudesse considerar escabroso: tinha uma consciência extremamente tranquila e se sentia, pelo que pude perceber, plenamente realizado apesar de não ter ganho dinheiro nem fama.
Tive muitas provas de que a história dele era toda verdadeira. Quando apresentei minha tese de mestrado, por exemplo, dei-lhe uma cópia, e êle a enviou a um afamado escritor de que falava com frequência. Fiquei sabendo disso porque o tal escritor me enviou uma carta comentando o meu trabalho. (O Silvino tinha um inglês impecável, e fêz a revisão da minha tese antes que eu a apresentasse, seguramente me salvando de alguns vexames.)
Em outra ocasião, a câmara de comércio patrocinou uma conferência do diplomata que havia sido embaixador americano no Brasil, e lá fomos nós. No caminho, o Silvino me disse que havia trabalhado com aquele diplomata no Irã. Terminada a conferência, e respondidas as perguntas da platéia, fomos falar com o diplomata, o qual o reconheceu imediatamente e ficaram os dois trocando reminiscências.
O Silvino era uma figura bastante inesquecível porque não tinha nehum cabelo. Tinha duas filhas na casa dos 30 anos, bastante jóvens para um pai na casa dos oitenta: êle tinha se casado aos 50 anos com uma mulher que na época tinha apenas 20.
Contou-me êle que os fatos de não ter cabelos e de ter filhas ainda jóvens estavam intimamente ligados, o que me surpreendeu mas que se tornou bastante compreensível. Êle pouco falava dos acontecimentos de sua vida enquanto solteiro, exceto pelas referências aos lugares onde tinha vivido, porque tinha trabalhado para o govêrno norteamericano junto a representações em diversos países, dos quais destacava sempre o Irã, que já mencionei, e a China; e de vez em quando se referia a certos acontecimentos engraçados, cuja veracidade nunca me foi possível confirmar ou não.
Mas a questão da sua falta de cabelos e da idade das filhas êle explicou assim: quando tinha aproximadamente 50 anos, êle estava trabalhando para o govêrno brasileiro em San Francisco, onde ia haver uma famosa feira mundial em que os diversos países apresentariam seus produtos, suas culturas, suas possibilidades turísticas, etc. Estando em San Francisco, e unindo o útil ao agradável, como de costume, êle frequentava os night clubs da cidade após os afazeres do dia, e num desses night clubs gostou de uma corista, que também gostou dele, e assim foram namorando consistentemente, embora ela fosse simplesmente 30 anos mais jóvem do que êle.
Habituado a arranjar tudo, a dar jeito em tudo, que tinha sido e ainda era a marca registrada de sua vida, decidiu arranjar as garotas mais charmosas da cidade para fazerem presença no stand do Brasil na tal feira.
Alguns dias antes de a feira ser inaugurada, entretanto, foi avisado pelo sindicato pertinente que as garotas que tinha arranjado não poderiam trabalhar na feira porque não eram sindicalizadas. Aquilo o abalou tremendamente porque além do problema que teria com as garotas já contratadas, todas as sindicalizadas já estavam empregadas nos stands de outros países, ou seja, o Brasil estava ameaçado de ficar sem garotas no stand, - coisa que todos consideravam absolutamente fundamental porque achavam que o público simplesmente não visitaria stands que não exibissem bonitas garotas.
Passou uns dois dias de intensa pressão, e teve a idéia de apelar para uma solução muito familiar dos políticos brasileiros nos dias de hoje: procurou o dirigente do sindicato que tinha lhe comunicado o problema e perguntou, sem qualquer rodeio, quanto custaria para dar um jeito de sindicalizar as suas garotas. O sujeito entrou no jogo imediatamente, negociaram uma quantia, que pagou, e as garotas, devidamente sindicalizadas, foram autorizadas, finalmente, a trabalhar na feira.
Quando o problema estava resolvido, em lugar de se sentir aliviado êle disse que passou a se sentir extremamente mal, sem me descrever o quê sentia. E por isso tomou um avião e foi até Washington para se consultar com seu médico, que devia ser, então, bastante jóvem, porque com 80 anos êle ainda viajava para Washington de vez em quando para ser examinado pelo mesmo médico. (Acho que isso dá uma medida de quanto o Silvino era sistemático.)
Depois de examiná-lo, o médico lhe teria dito que êle estava tendo uma espécie de colapso nervoso, e que precisava se recolher a um hospital para se tratar e para esperar passarem os efeitos do tal colapso nervoso.
Essa notícia apavorou-o, porque a feira estava para começar, e fez uma espécie de "trato" com o médico: êle voaria de volta para San Francisco para cuidar da feira, e tão logo a feira terminasse retornaria a Washington para se tratar. O médico, sabendo que isso levaria menos de 2 meses, concordou.
E, evidentemente, voltando a San Francisco êle retomou o seu namoro com a corista, que agora teve sua importância extremamente ampliada por causa do apôio que ela lhe proporcionou enquanto lá esteve.
Terminada a feira, despediu-se da namorada e foi, finalmente, recolher-se ao hospital, onde ficou em tratamento alguns meses, trocando cartas com a namorada de San Francisco e ao mesmo tempo perdendo todos os cabelos e pelos do corpo e as unhas, entre outras reações que a moléstia ocasionou. Depois de curado do tal colapso nervoso, as unhas voltaram a crescer, mas os cabelos e pelos tinham se ido definitivamente.
Pela primeira vez na vida sentiu que não podia continuar sozinho, e assim escreveu à namorada de San Francisco perguntando se ela quereria se casar com êle, mas avisando que êle não era mais aquele sujeito vigoroso e bem apanhado que ela tinha conhecido, porque não mais tinha cabelos, nem bigode, nem sobrancelhas, etc, etc: descreveu-se como pôde.
Ela devia estar muito apaixonada, porque aceitou imediatamente, e assim o Silvino lhe enviou uma passagem para ela voar para Washington, onde se casaram. Conheci a esposa do Silvino, uma senhora muito distinta, simpática e valorosa, com a qual êle teve as duas filhas de que falei.
Com 80 anos de idade, o Silvino não queria se aposentar. Alegava que não podia fazê-lo porque não teria uma renda suficiente para viver se o fizesse, e assim ia conseguindo fazer com que a empresa o contratasse novamente, de dois em dois anos, sempre com o objetivo de aposentá-lo ao final de cada um deles, quando êle conseguia novamente renovar ou reformar o contrato.
Perdi o Silvino de vista quando fui novamente transferido, e pouco depois o escritório foi absorvido por um escritório único que a Siderbrás, holding da siderurgia estatal brasileira na época, tinha estabelecido em New York. Fiquei sabendo que o Silvino ainda conseguiu ficar por lá mais uns cinco anos. Com oitenta e sete, ou oitenta e oito, consta que foi finalmente aposentado na marra.
Grande alma, o meu amigo Silvino!

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