Observador Isento (Unbiased Observer)

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Tuesday, August 07, 2007

Terminou a guerra

Luiz A. Góes

Foi em 1945 e eu ainda não tinha completado 7 anos de idade. Mas me lembro como se fosse hoje.
Vivíamos, em São Paulo, as incertezas e alterações que o fim da guerra trazia. Meu pai chegou em casa um dia, depois de muito tempo, com um pão. Começamos a cortá-lo em fatias e passar manteiga, para constatarmos desapontados que aquele pão, de uma côr escura e extremamente duro e pesado, estava muito longe de se parecer com aqueles pães que minha avó, lá no sul, fazia.
Pareceu que tinham esquecido de usar fermento, parecia um pedaço de borracha, intragável e incomível.
Repentinamente as coisas se sucediam com rapidez vertiginosa, embora eu não consiga me lembrar de detalhes. Mas me lembro que meu pai nos colocou minha mãe, minhas irmãs e eu, que era o mais velho, num trem rumo a Santa Catarina. Viagem longa e cansativa, e quando o trem fez parada em Ponta Grossa, no Paraná, uma tia que lá residia nos esperava na estação.
Vendo o estado de cansaço da irmã, assustou-se e foi logo dizendo para jogar tudo nas malas e passá-las pela janela, porque ficaríamos alí mesmo, nada de prosseguir viagem naquelas condições. Meu tio apoderou-se das passagens e correu para o guichê a fim de obter um reembolso correspondente ao restante da viagem.
E assim ficamos em Ponta Grossa, onde vivemos dias inesquecíveis com aqueles tios de saudosa memória.
Um dia apareceu lá, de repente, o meu tio Gino, que era um de meus heróis, rapagão forte, bem disposto e de boa têmpera, sempre bem humorado e querendo agradar-nos. Veio com sua farda da fôrça aérea, à qual estava servindo. Tinha sentado praça em Curitiba, mas conseguiu ser transferido para a velha Porto União para tomar conta do campo da aviação, que era como se chamavam os aeroportos naquela época. Fiquei sabendo depois que êle era então o único representante da fôrça aérea na cidade, e passava os dias em casa, ajudando nos trabalhos do armazém de meu avô, mas sempre com os ouvidos apurados para qualquer barulho de avião que aparecesse, porque embora geralmente soubesse quando os aviões poderiam chegar, sempre havia alguns não programados. Quando chegava a hora, ou ouvia algum ronco, montava a sua bicicleta e voava para o campo da aviação, a fim de cuidar dos diversos serviços necessários, a qualquer hora do dia ou da noite, e com qualquer tempo.
Pois em Ponta Grossa foi anunciado que os soldados lá residentes que tinham ido para a Itália estariam chegando de volta à cidade num domingo à tarde, e que haveria uma grande recepção para êles. Minha mãe arrumou-nos a todos esmeradamente, como sempre fazia, e lá fomos para ver e aplaudir os soldados que retornavam.
Tinham passado uns cordões de isolamento nos dois lados de uma rua, uma espécie de descida suave, atrás dos quais o público poderia ficar para ver os soldados, que desceriam a rua. Esperamos um bocado e minha mãe deixou-me sentar na guia da calçada por baixo do cordão de isolamento, porque estávamos ficando cansados.
Lá para as tantas apareceram, de maneira esparsa, alguns soldados, para os quais batíamos palmas. Êles iam descendo a rua a passos meio trôpegos, a maioria sem nada na cabeça ou nas mãos, com os botões superiores das fardas de campanha que envergavam desabotoados, e olhando vagamente para a frente, raramente para os lados, com semblantes sérios. Muito diferentes do que eu tinha imaginado, ou seja, que viriam alegres, que haveria música, que estariam marchando, ou que estariam sendo esperados por gente que os abraçaria efusivamente.
Fiquei vendo aquilo e pensando, sem compreender nada, como teria sido a tal guerra de que tanto se falava.
Repentinamente um soldado que descia sozinho a rua, mais ou menos no meio dela e com o olhar esgazeado e o semblante inexpressivo de todos os demais, parou, virou-se para o meu lado, e começou a andar em minha direção. Eu, que batia palmas, parei e fiquei esperando para ver o quê iria acontecer.
Êle veio até mim, colocou a mão na minha cabeça e ficou me olhando, sem nada dizer, esboçando um vago sorriso de que nunca me esqueci. Ficou assim, imóvel, por alguns segundos, e depois retomou a sua caminhada rua abaixo.
As pessoas que estavam em volta ficaram silenciosas, olhando a cena. Ninguém dirigiu a palavra a ninguém. Foi marcante.
Depois de algum tempo os soldados pararam de passar e a multidão começou a se dispersar. Fomos andando distraidamente, descendo a rua até chegarmos a uma praça. De repente minha mãe começou a perguntar por uma de minhas irmãs, que inexplicavelmente não parecia estar conosco embora tivesse estado o tempo todo. Foi ficando cada vez mais aflita, e uma mulher, ouvindo-a falar perguntando por minha irmã, disse: "É uma menininha moreninha? Ela estava chorando porque tinha se perdido da mãe, e duas moças foram levá-la até a Rádio, para anunciar…" e assim possibilitar que os pais fossem encontrados.
"Para quê lado fica a Rádio?" perguntou o meu tio herói. "Lá para cima," respondeu a mulher. Olhamos todos na direção indicada, que era a rua em descida da qual tínhamos vindo, e avistamos, lá no alto, duas mulheres ladeando uma menina, que seguravam pelas mãos.
Meu tio herói não teve qualquer dúvida: sem nada dizer saiu em disparada ladeira acima, e de lá trouxe no colo minha irmã, que veio sorridente conversando com êle. Logo depois as duas moças se aproximaram também, repetindo a explicação da mulher: que iam levá-la à Rádio para anunciar. Lembro-me de minha mãe agradecendo.
Tempos diferentes, tempos tranquilos: éramos felizes e não sabíamos.

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