Observador Isento (Unbiased Observer)

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Friday, November 03, 2006

As esposas do Pascoal

Luiz A. Góes
Naquele tempo, já um tanto remoto, o recrutamento de pessoal para compor as equipes de operação das unidades da COSIPA colocáva-nos constantemente em situação delicada porque não se encontrava gente com experiência em nada, apenas gente com vontade e desejo de conseguir um lugar ao sol. Fizemos de tudo para atrair pessoal de outras plagas, mas em vão.
Assim, vimo-nos constrangidos a admitir as pessoas com base em seu desempenho nas entrevistas e em sua história pregressa, que em geral não era muita porque a maioria, embora já tivesse tido empregos anteriores, apresentava como credenciais apenas um diploma de ginásio ou de segundo gráu, sem nada de específico quanto às posições a que se candidatavam.
Organizamos, assim, dois grupos, aquele dos que tinham o curso secundário completo e o dos que tinham apenas o primeiro gráu. Os primeiros estariam um escalão acima, que veio a ser oficialmente chamado de Chefes de Turno, porque as unidades operacionais trabalhavam em três turnos de oito horas cada um, rodando as vinte e quatro horas de todos os dias do calendário.
E os segundos formaram o escalão que veio a ter o nome de Encarregados dos diversos serviços necessários a cada unidade, cada um chefiando diretamente uma equipe de uns cinco a doze trabalhadores.
Organizamos cursos de formação, à falta de outros recursos, e levamos todo esse pessoal para conhecer outras usinas e nelas estagiar por curtos períodos, para não sermos pegos totalmente crus quando a hora de operar para valer se apresentasse.
A turma toda era composta por gente jóvem, a maioria entre os vinte e os vinte e cinco anos, mas havia umas poucas exceções, um par de quarentões que haviam conseguido passar o cerrado bloqueio das entrevistas, - porque infelizmente parecia haver um certo preconceito contra êles, - e que preocupavam a todos os responsáveis pelas unidades que vieram a ter que aceitá-los.
Felizmente nenhum deles veio a desapontar, o que também se passou com a quase totalidade da rapaziada recrutada, contratada e treinada: a usina entrou em operação, teve seus percalços, mas êles fizeram a sua parte, e a fizeram bem, tanto assim que nunca se pensou em substituí-los.
Coube-nos um dos citados quarentões, que chamarei de Pascoal. Limitado em recursos de conhecimento, mas cheio de boa vontade, foi designado para chefiar um grupo cuja função era basicamente dar conta de um conjunto de serviços que não se caracterizavam como próprios de nenhum dos setores específicos da unidade. Eram serviços gerais, inclusive de limpeza, chatos mas necessários.
O Pascoal não reclamou: dedicou-se ao trabalho, e assim fomos tocando.
Todos os dias, minha primeira preocupação pela manhã era ler cuidadosamente o livro de relatório das chefias de turno, para saber o quê se havia passado desde o fim do expediente do dia anterior. Cultivávamos uma certa liberdade de expressão, - o que, aliás, veio a nos custar meio caro quando lidos os tais relatórios por nossos superiores umas poucas vezes, - de modo que os chefes de turno escreviam tudo o que lhes vinha à mente sem preocupação com o vernáculo e nem com o que se poderia chamar de etiqueta ou bons costumes: eram relatórios bem crus, mas muito significativos e bem tipo pé-na-terra. Eram, às vezes, também um tanto hilariantes.
Num desses relatórios encontrei um dia uma alusão a certa preferência com que o Pascoal tratava um de seus subordinados, o Zé Roque, - não me lembro exatamente qual era o nome dele. Eu já havia ouvido um zum-zum, e aquela menção por escrito me perturbou um pouco, porque naquele ambiente já por si duro e difícil para todos queríamos evitar a todo custo favoritismos, apadrinhamento e, sobretudo, certos problemas como homossexualismo e coisas que tais. Não se tratava de preconceito contra quem quer que fosse, apenas queríamos evitar que problemas desse tipo se somassem aos que já tínhamos, particularmente os problemas do pessoal que aqui e ali vinham à tona e demandavam providências de nossa parte.
Preferi, entretanto, nada fazer e apenas manter o Pascoal e o tal Zé Roque sob observação.
Um par de semanas mais tarde, conversando com o chefe de turno que tinha escrito o comentário, levei-o a falar de seus subordinados, e êle logo voltou a mencionar o problema do favoritismo antes mencionado sem que eu tivesse sequer tocado no assunto: "O Pascoal está protegendo muito o Zé Roque, e isso está deixando o resto do pessoal zangado…"
Diante desse comentário, fiz algumas perguntas, tentando pelo menos obter dados que me tranquilizassem quanto à possibilidade de estarmos diante de um caso de homossexualismo. Felizmente nada desse tipo veio à baila, de modo que fiquei mais aliviado, mas continuei intrigado porque não parecia haver qualquer explicação para aquela preferência.
Resolvi pensar por alguns dias, e pouco depois surgiu, no livro de relatórios, a informação de que o Pascoal não havia comparecido ao serviço. Passamos o dia sem qualquer notícia dele, e no dia seguinte alguém trouxe a informação de que sua esposa tinha falecido.
"Pobre Pascoal", pensei com meus botões. Perder a esposa nessa quadra da vida não deve ser nada fácil. "Será que tem filhos? Algum deles ainda dependente dele e da esposa?", foi a ordem de pensamentos seguintes. Nesse momento veio-me à mente o inquietante zum-zum a respeito do favoritismo dispensado pelo Pascoal ao Zé Roque, agora agravado pelo boato de que o Zé Roque seria filho do Pascoal!
Minha primeira reação a esse boato foi não acreditar, mesmo porque o que não faltava naquela época eram boatos de toda sorte e prestar atenção a êles seria pura perda de tempo, embora o passar dos anos tenha ensinado a sabedoria do velho adágio de que onde há fumaça também há fogo.
Dois dias depois o Pascoal apareceu trabalhando normalmente. O turno havia mudado e êle estava trabalhando de dia com sua turma. Vendo-o, ocorreu-me fazer uma pequena investigação, porque se o Pascoal tinha perdido a esposa, o Zé Roque podia ter ficado órfão, mas não constava que tivesse faltado ao trabalho naqueles últimos dias. Seria aquilo indicação de que a hipótese de ser filho do Pascoal era falsa?
Contactei o Departamento de Pessoal para verificar quê providência tinha sido tomada em relação ao falecimento da esposa do Pascoal, e para minha surpreza informaram que não constava que êle fosse casado, nada constando quanto a qualquer falecimento.
Resolvi chamar o Pascoal e confrontá-lo com as informações, porque acima de tudo não admitia que alguém pudesse estar mentindo no tocante a assunto tão importante.
A conversa foi difícil e dolorosa, a abertura de uma caixa preta de que jamais esquecerei. Para início de conversa dei meus pêsames ao Pascoal pelo falecimento da esposa, que êle agradeceu embora sem demonstrar grande emoção. Iniciei então meu interrogatório, e logo o Pascoal informou que de fato quem tinha falecido era sua esposa, mas que não vivia com ela havia anos e por isso não tinha informado ser casado ao Departamento de Pessoal.
Diante de minha expressão de surpresa, esclareceu expontaneamente que vivia com outra mulher, com a qual não estava oficialmente casado. Explicou que tinha faltado ao trabalho apenas porque sua esposa, a de direito, tinha falecido e não havia ninguém para cuidar do funeral dela.
Lembrei-me então do Zé Roque, e resolvi tocar no assunto. Nesse momento os olhos do Pascoal encheram-se de lágrimas, o que me deixou ainda mais confuso. "Sempre quiz ter um filho…", disse êle com a voz embargada, "…mas nem a que faleceu e nem a mulher com quem vivo tiveram filhos…"
"O Zé Roque é mesmo seu filho, como andam dizendo?", perguntei um tanto confuso. O Pascoal hesitou um pouco, e balbuciou: "É."
Fiquei estupefato. "Filho da falecida, ou da sua atual companheira?", perguntei, sem me dar conta do absurdo da coisa. De repente tive um clique e, antes que o Pascoal embarassadamente respondesse, mudei a pergunta: "Qual a sua idade, Pascoal?" "Quarenta e dois", respondeu êle. E o Zé Roque, que idade tem?" "Vinte e três".
Fazendo contas rapidamente, perguntei: "Você se casou com menos de 18 anos de idade?"
Muito embaraçado, o Pascoal gaguejou: "É que… eu não casei."
"Como assim?", perguntei.
Um pouco mais calmo, mas ainda bastante tenso, o Pascoal começou então a contar uma história um tanto complicada, que naquela época nem de leve me passava pela cabeça. Explicou que quando ainda rapazola tinha tido uma namorada, paixão ardente, incontrolável, daquelas que a gente nunca esquece… Tinha sido na época da guerra e, convocado para o serviço militar, viu-se de repente transferido para local remoto devido à remoção da unidade a que servia. Com isso perdeu contacto com a namorada, e ao voltar à sua cidade quando deu baixa, não mais a encontrou porque a família tinha se mudado para lugar não informado.
Tendo conhecido o Zé Roque, percebeu rapidamente que tinha com êle numerosas semelhanças, lembrando-se especialmente de quando tinha vinte anos, o que o levou a conversar com o rapaz mais longamente. Pelas datas e pelo nome da mãe, entendeu que o Zé Roque era seu filho, e procurou fazer contacto com sua antiga namorada, que estava casada com outra pessoa. Ficou assim sabendo que a família tinha se mudado justamente para evitar os comentários que a gravidez precoce da moça provocariam no local onde moravam.
Problemão! Eu não podia culpá-lo pelo que tinha sido obra do acaso, um capricho do destino que reuniu inavertidamente pai e filho depois de mais de vinte anos. Mas não podíamos deixar que a situação se perpetuasse e assim tivemos que transferir o Zé Roque para outra área. Cortou-me um pouco o coração, mas acho que o Pascoal compreendeu, porque se mostrou sempre muito amigo e manteve uma atitude que eu chamaria de altamente profissional.
Francamente, meus amigos, se eu tivesse que inventar a impressionante história do Pascoal, acho que me seria impossível fazê-lo.