Observador Isento (Unbiased Observer)

A space for rational, civilized, non-dogmatic discussion of all important subjects of the moment. - Um espaço para discussão racional, civilizada, não dogmática de todos os assuntos importantes do momento.

Tuesday, November 25, 2008

Nosso começo e nosso fim

Luiz A. Góes

Parece meio incrível que certas coisas fundamentais para cada um de nós ainda não tenham sido suficientemente consensadas a ponto de se tornarem leis pétreas, incontestáveis, aceitas por todos.
Estão nessa categoria as definições do início e do fim da vida de um ser humano. Discute-se muito quanto ao início, e muito pouco quanto ao fim, mas ambos merecem igual atenção, porque lidam com o que há de mais fundamental para qualquer pessoa: a vida em si mesma.
É claro que não me sinto com autoridade para fazer definições de qualquer tipo a respeito dessas questões, mas como interessado no assunto, - como acredito que todos somos, - permito-me fazer algumas reflexões visando contribuir para provocar uma discussão tão isenta quanto possível do assunto.
Embora pareça não haver mais qualquer dúvida de que quando a atividade cerebral cessa o ser humano deixa de existir, ainda é a assinatura do médico no atestado de óbito, e a causa por êle apontada como origem da morte, o que prevalece oficialmente. Assim, são muitos os casos de pessoas que, tendo tido morte cerebral, são mantidas "vivas" por meios artificiais, sejam aparelhos ou qualquer outra forma, com os corações batendo e o sangue circulando nas veias, mas em estado vegetativo. Essa prática ocorre frequentemente por conveniências sociais, como por exemplo dar tempo para que parentes e amigos cheguem para assistir ao sepultamente. Mas também dá margem a outras coisas mais discutíveis, como interêsses econômicos ou financeiros dos herdeiros ou disputas entre êles. Os jornais têm se ocupado desse tipo de assunto com certa frequência, e muitos desses casos se tornam notórios por motivos diversos, havendo inclusive a frequente apelação a motivos religiosos para justificar a prática.
Mas parecem ser bem poucos esses casos em que surgem disputas quanto ao fim da vida humana, de modo que não chegam a ser preocupantes as discussões e até embates legais que possam causar. Melhor dizendo: não chegavam até há algum tempo, porque os programas de doação de órgãos, que vão se tornando cada vez mais generalizados em quase todo o mundo, estão trazendo a discussão da definição do final da vida humana de volta à discussão, e agora com implicações demasiado sérias para serem ignoradas.
Com o progresso da medicina, os transplantes de órgãos passaram a constituir prática destinada a prolongar a vida de muitas pessoas, ou de melhorar a qualidade de vida de muitas pessoas. De há muito se conhece, por exemplo, os benefícios dos transplantes de córnea para melhorar ou salvar a visão de pessoas com problemas visuais diversos. Essas córneas são invariavelmente provenientes de cadáveres, muito embora já existam, tanto quanto tenho ouvido falar, córneas artificiais aplicáveis em alguns casos.
Há algumas décadas o mundo foi surpreendido pelo primeiro transplante de coração, e logo depois esses transplantes foram se multiplicando e acabaram se tornando uma espécie de banalidade, tantos são os que se fazem atualmente. Não há qualquer dúvida de que ganhar um novo coração significa, de certa forma, nascer novamente para quem só podia esperar o fim quando essa peça vital do organismo resolve parar de trabalhar. E esses corações têm que provir de cadáveres, da mesma forma que qualquer outro órgão ou parte do corpo humano que seja transplantado de um indivíduo a outro.
Os transplantes se tornaram tão vitoriosos que atualmente se transplanta quase tudo. Talvez o cérebro seja o único órgão a respeito do qual ainda não se conseguiu qualquer sucesso nesse particular, mas quase se pode dizer que se uma pessoa tiver um cérebro em boas condições, pode se candidatar a receber um corpo completo de outro indivíduo para substituir o seu que esteja demasiado gasto ou seriamente comprometido.
O grande problema que se apresenta, no caso dos transplantes, é que para que alguém possa receber um órgão transplantado, é preciso que outro indivíduo tenha de alguma forma renunciado a êle. É possível a um indivíduo vivo doar um de seus rins para outra pessoa, porque se pode viver apenas com um rim, mas quanto aos demais órgãos a doação invariavelmente ocorre com o fim da vida do doador. E essa operação de transplantar órgãos de um corpo para outro precisa ser levada a efeito com considerável rapidez, a fim de evitar que o órgão a transplantar sofra qualquer deterioração no corpo do doador falecido.
Não é preciso pensar muito para se perceber a gravidade do problema: se se espera muito para assegurar que a morte do doador realmente ocorreu, perde-se o órgão a transplantar, e se se tem muita pressa corre-se o risco de extrair o ógão de um doador que poderia eventualmente ainda estar vivo. Ouve-se falar, por exemplo, de numerosos casos em que pessoas esperam interminavelmente pela oportunidade de receberem um órgão doado que seja compatível com suas características sanguíneas e tudo o mais, e de vez em quando se ouvem notícias de pessoas importantes que precisavam urgentemente de um transplante múltiplo de órgãos aquinhoadas com o "feliz" surgimento imediato de um doador em ótimas condições e com todas as características desejadas.
É evidente o perigo que isso pode representar para o indivíduo, tenha êle se declarado doador de órgãos ou parte de seu corpo quando em vida, ou tenham seus familiares a disposição de fazê-lo doador caso venha a falecer, - e até mesmo quando inexista qualquer uma dessas intenções. Quer dizer: uma definição legal precisa, indiscutível, insofismável, do fim da vida do ser humano, definição essa pela qual todos sem exceção tenham que se pautar, é uma necessidade absoluta.
Quanto ao início da vida, o problema apresenta dificuldades ainda maióres. Sabe-se que em algum estágio de praticamente todas as civilizações avançadas conhecidas tanto o aborto quanto o infanticídio foram amplamente praticados, e o primeiro continua a ser praticado com muita frequência, independentemente de ser prática legalmente permitida ou não, em todo o mundo. Parece se tratar de uma dessas coisas que desafiam as leis, admitindo como único regulador o conjunto de convicções íntimas de cada indivíduo a cada momento, podendo, inclusive, variar grandemente para o mesmo indivíduo ao longo de sua vida e conforme as circunstâncias de cada hora.
Aqui as dificuldades se relacionam, tanto quanto entendo, com dois aspectos que se entrelaçam, ambos com carências importantes. O primeiro deles, é o conjunto das convicções religiosas e filosóficas de cada indivíduo, convicções essas que dificilmente, - eu diria mesmo que "impossivelmente", - são idênticas para todos os indivíduos de cada sociedade ou de cada país, quê dirá para todos os indivíduos do mundo.
O segundo aspecto refere-se à falta de uma definição científica quanto ao início da vida que seja aceita por todos sem qualquer dúvida e não passível de discussão, a ponto de poder ser estatuída legalmente como o marco inicial da existência de um ser humano.
De fato, as grandes religiões (pelo menos as que conheço) e a esmagadora maioria dos indivíduos com convicções religiosas do tipo fundamentalista tendem a declarar que um óvulo se torna um ser humano tão logo tenha sido penetrado por um espermatozóide, tanto quando isso se realiza dentro do organismo da mãe quanto quando conduzido externamente, a chamada fertilização in vitro.
Parece, pelo que se lê frequentemente sôbre o assunto, que a maiór parte, ou pelo menos uma grande parte, dos óvulos fertilizados in vitro, por exemplo, são descartados sem chegarem a ser implantados num útero feminino. Considerar esses óvulos fertilizados como seres humanos, assim, pode ser um excesso de zêlo ou exagero de interpretação, posto que de qualquer forma não terão, se não chegarem a ser implantados nun útero, nenhuma possibilidade de virem a se desenvolver e tornar-se fetos.
Mas mesmo quanto aos óvulos fertilizados que se encontrem dentro do útero, seja por ato sexual natural ou por inseminação artificial, apresenta-se um problema crucial para a definição do início da vida humana, porque há a necessidade de o óvulo fertilizado conseguir agarrar-se à parede do útero dentro de alguns dias depois da fertilização, - li em algum lugar que isso ocorre lá pelo nono dia depois da fertilização, - e aqueles óvulos feritilizados que, mesmo dentro do útero, não consigam realizar essa "proeza", acabam sendo eliminados naturalmente pelo organismo receptor. Quer dizer: mais essa "batalha" precisa ser vencida para que um óvulo fertilizado tenha alguma chance de vir a se desenvolver e tornar-se um feto.
Depois disso, há um período em que, embora se verifique crescimento, ainda não se apresentam sinais de uma vida separada da da mãe: o coração, por exemplo, só começa a bater depois de algumas semanas, e só depois de um par de meses é que começa a se verificar alguma atividade cerebral.
Assim como o fim da vida humana parece ser melhor definido como o momento em que cessa a atividade cerebral, o início da atividade cerebral talvez seja o critério mais adequado para se definir como o do início da existência de um ser humano como tal. Mas os eventos anteriores, - agarramento à parede do útero, e início dos batimentos cardíacos, também poderiam ser levados em consideração de alguma forma, para estabelecimento de uma definição legal clara do início da existência de um ser humano.
É claro que nenhuma definição científica ou legal resolverá a questão para quem adote acima de tudo a definição ditada por convicções de tipo religioso ou mesmo de tipo apenas filosófico, mas pelo menos terá a virtude de colocar alguma órdem na balbúrdia existente atualmente, em que as pessoas tendem a como que se dividirem em duas "religiões" face ao problema do aborto: aquelas que são totalmente contra e aquelas que são totalmente a favor. Trata-se de duas posições extremadas, sem qualquer dúvida, bastando mencionar, por exemplo, os problemas apresentados pelos casos de gravidez resultante de estupro, e os de feto anencefálico, - ambos já contando com autorização legal para a prática do aborto a qualquer tempo, - para se concluir que existe a necessidade de se estabelecer regras precisas para disciplinar a questão.
Mas, evidentemente, se o aborto tem sido praticado de maneira mais ou menos ampla, como todos sabem, mesmo sem amparo legal, existe uma outra ódem de problemas com êle relacionada que precisa ser resolvida ou desmistificada. Trata-se dos problemas decorrentes da prática do abôrto por pessoas não medicamente habilitadas para fazê-lo. Esses problemas afetam a população de baixa renda, porque geralmente as pessoas que dispõem de recursos econômicos suficientes sempre conseguem profissionais que efetuam a intervenção segundo práticas médicas seguras, sem colocar em risco a saúde ou mesmo a vida da mulher.
O reconhecimento de que a população de baixa renda precisa poder ser assistida pela rede de saúde da previdência social a fim de livrar-se dos riscos que o aborto praticado por amadores, - as famosas "aborteiras", entre outros, - é uma necessidade. Quer dizer: mesmo que venha a ser estabelecido um marco legal para o início da vida humana, há a necessidade de se descriminalizar o aborto para que as mulheres pobres possam ser assistidas pela rede hospitalar sem maióres problemas.
Atualmente, segundo tenho lido, o fato de que nos casos de estupro o aborto é permitido abriu uma brecha que representa uma meia solução para o problema, já que foi admitido que o simples registro de uma ocorrência policial efetuada pela mulher informando ter sido estuprada está sendo aceito como suficiente para amparar a prática do aborto pela rede pública. Não sei como tem funcionado na prática, mas de qualquer forma se trata de uma situação de "meia verdade", já que a esmagadora maioria desses casos não são, como se pode facilmente imaginar, de estupro, e sim de falta de conhecimento e meios, seja quanto a métodos e práticas anti-concepcionais, ou quanto a meios para alimentar um número cada vez maiór de bocas.
Esse é o resumo do que vejo e penso em relação ao nosso começo e nosso fim como seres humanos. Gostaria de saber as opiniões daqueles que me dêm a honra de ler êste ensaio.

Thursday, November 20, 2008

19 de Novembro - Dia da Bandeira

Luiz A. Góes

A bandeira brasileira foi criada quando D. Pedro I proferiu o Grito do Ipiranga, em 1822. Suas cores foram, desde o início, o verde e o amarelo.
O verde provém da Casa de Bragança, a família real a que D. Pedro I pertencia, e que foi iniciada pelo Duque de Bragança em 1640, quando se declarou rei de Portugal sacudindo o jugo da Espanha que perdurava desde 1580.
O amarelo provém da Casa de Habsburgo, a família real austríaca a que pertencia a primeira imperatriz, D. Leopoldina, esposa de D. Pedro I, a mesma família real à qual pertenceu a rainha Maria Tereza, do Império Austro-Hungaro, um grande império que precedeu a existência da Alemanha e da Itália como países unificados.
Consta que fazer a bandeira verde com o lozango amarelo no centro foi idéia de uma costureira, que a cozeu. No centro foi colocado o brazão imperial adotado por D. Pedro I.
Quando da Proclamação da República, houve um desfile e, como não queriam e nem podiam usar a bandeira imperial porque o imperador tinha sido deposto, encomendaram emergencialmente uma bandeira a uma outra costureira, a qual "fabricou" uma bandeira aparentemente imitando a bandeira americana, com listas verdes e amarelas. Essa bandeira foi a que desfilou como a primeira bandeira do Brasil republicano, mas logo depois alguém teve a idéia de substituir o brazão imperial pelo globo com a frase "Ordem e Progresso" e as estrelas representando as então provícias, hoje estados, mais o distrito federal, baseando-se em posições de constelações e estrelas no firmamento visto no Brasil.
Mais tarde inventaram a lenda de que o verde representaria as matas, o amarelo o ouro e o azul o céu, mas nada disso procede.
Há ainda uma interpretação jocosa, que ouvi algumas vezes quando era estudante: o verde representaria as matas que cobrem a maiór parte do Brasil, ainda por ser desbravado. O amarelo representaria o ouro, que continua (ou continuava) perdido no meio da mata, sugerindo que o país é rico mas não sabe onde sua riqueza está escondida. O dístico "Ordem e Progresso" sôbre o céu estrelado significaria que temos ordem e progresso quando estamos dormindo, uma alusão clara à falta de organização brasileira de que muito se falava naquela época.
Seja como for, creio que os responsáveis pela adoção da bandeira brasileira atual desconheciam a verdadeira origem de suas cores, tanto que não pensaram em modificá-las, o que foi muito bom porque deu à bandeira brasileira uma longevidade, apesar da proclamação da república, que de outra forma não teria tido.

Friday, November 14, 2008

Senhorita de idade

Luiz A. Góes

De repente nossa casa começou a ficar cercada por prédios altos, com centenas de janelas olhando para dentro de nosso quintal. Nossa privacidade tinha se acabado, e comecei a pensar em me juntar à onda, desistindo de morar em casa na medida em que conseguisse construir um prédio de apartamentos no local, dos quais ficaria com um para minha moradia. Mas para isso precisaria fazer algum tipo de sociedade com um de meus vizinhos, porque tinha um bom terreno, mas com largura de frente insuficiente para a construção de um prédio de bom gabarito.
Um de meus vizinhos tinha, como eu, construído piscina e tudo o mais em seu quintal, e não queria saber de falar no assunto: sempre que eu tentava abordar a questão êle se antecipava dizendo que jamais se mudaria dali, agora que seus filhos estavam casados e os netos, que estavam chegando todos os anos, curtiam bastante aquele quintal todos os finais de semana, junto aos avós: manter a família em torno da gente sempre foi o grande sonho de quem envelhece.
No outro lado havia uma espécie de sobrado do tipo conhecido na cidade pela expressão "apartamento tipo casa", porque se tratava de duas residências, uma no andar térreo e outra no andar superior. Estavam alugadas e procurei saber quem era o proprietário: fiquei sabendo que era uma senhora espanhola já idosa que residia em bairro próximo ao centro da cidade. Fui procurá-la e me espantei quando vi que era pessoa com mais de noventa anos de idade, a qual declarou que tinha comprado aquele prédio para dar um apartamento para cada um de seus dois filhos, os quais já usufruiam da renda que os aluguéis proporcionavam. Como ela disse que os filhos é que resolveriam se gostariam ou não de participar de um empreendimento do tipo que eu propunha, fui procurá-los para conversar.
Um deles era locutor de uma rádio bastante antiga, tipo bem falante, mas que vim a descobrir ser manobrado pela mulher, pessoa gananciosa e desagradável no trato: não devia ser fácil viver numa casa tendo-a como proprietária, porque depois observei que frequentemente visitava a sua propriedade e tinha longas conversas com os inquilinos. Foi extremamente difícil lidar com ela, e acabei desistindo, inclusive porque nesse ínterim eu tinha conseguido contactar também o cunhado dela, irmão mais velho do locutor de rádio: era funcionário antigo de importante empresa e se encaminhava para aposentar-se.
Esse irmão mais velho era solteiro e residia em endereço que não revelava, o que dificultava os contactos e me obrigava a recorrer ao irmão locutor para conversar com êle. Por isso, a cunhada gananciosa patrulhava todas as nossas conversas e impedia que o solteirão tomasse posições independentes. Na última conversa que tivemos, e depois de explicar com bastante detalhe o que eu tinha em mente como empreendimento, mostrando as vantagens econômicas e financeiras do mesmo, a tal mulher impediu que o marido e o cunhado falassem, dizendo em resumo que não considerava aquilo um bom negócio e que preferia deixar tudo como estava. O cunhado solteirão, que pouco falava, soltou uma frase bastante surpreendente e, para mim, bastante incompreensível: "É melhor deixar tudo para os herdeiros…"
Que eu soubesse, êle não tinha descendentes, de modo que os herdeiros a que aludia só podiam ser o irmão e sua mulher, e mais tarde, quem sabe, os dois filhos do casal. Olhei para a mulher, e os olhos dela brilhavam a ponto de soltar faíscas: passaram-me rapidamente várias coisas pela cabeça e fiquei até meio apreensivo com a situação, mas resolvi encerrar o assunto porque vi que nada conseguiria.
Mas as coisas que se deseja deixar como estão sempre acabam se modificando contra a nossa vontade: o destino, ou Deus, parecem ter planos diferentes dos da gente, de modo que o que acaba acontecendo é aquilo que menos se espera. O vizinho que dizia que jamais se mudaria dali, repentinamente vendeu sua casa e se mudou para um apartamento, porque tinha sido vítima de um assalto que traumatizou bastante a êle e sua família. Fez tudo em segredo, sem falar comigo, e só assim vim a descobrir que tinha havido o assalto. Vendeu barato, e para meu azar o comprador era outro indivíduo desagradável, ganancioso e agressivo, que começou por colocar uma cêrca elétrica do tipo que se usa para gado em fazendas em toda a volta da casa sôbre os muros. Tivemos que fazer pressão sôbre êle para remover aquela cêrca elétrica, por ser perigosa e até mesmo ilegal (as cêrcas elétricas podem ser usadas em fazendas como cêrcas internas, mas não divisórias). Infelizmente com êle não haveria como conversar sôbre negócios.
Mais ou menos nessa época, entretanto, apareceu lá em casa um senhor português com sotaque bastante carregado, o qual se apresentou como corretor de imóveis e, surpreendentemente, aludiu à possibilidade de negociarmos os apartamentos tipo casa ao lado, já que êle tinha sido informado de meu interêsse naquele negócio fazia algum tempo. Talvez o recente término da construção de um grande prédio de apartamentos a menos de cinco metros do lado oposto dos apartamentos tipo casa tenha finalmente convencido os proprietários. Qualquer que fosse a razão, entretanto, indaguei a respeito dos proprietários, e o tal corretor disse que um deles, o solteirão, estava bastante doente. Mas não explicou exatamente porquê os proprietários estariam interessados no projeto, depois de terem simplesmente se negado a contemplá-lo cêrca de um ano antes.
Comentei que o tal solteirão devia estar vivendo uma vida difícil, sem ter uma família para cuidar dele, ao que o tal corretor português comentou: "Há lá uma senhorita de idade que cuida de fazer a comida e lavar a roupa dele…"
E o assunto ficou nesse pé, porque os dois sujeitos queriam vender e não participar de um empreendimento, - e eu não dispunha de dinheiro para comprar. Mas a visita do português me fez pensar, e logo tive a idéia de arranjar um sócio, na figura do dono de uma empresa construtora, o qual, depois de firmar um contrato comigo, procurou os dois irmãos e deles comprou o imóvel para viabilizar a construção do prédio. Fatos supervenientes, entretanto, impediram que o projeto se concretizasse, além do fato de que me apareceu uma oportunidade profissional que implicava em mudar-me para cidade longínqua, o que me levaria a simplesmente vender o meu imóvel, como acabei fazendo, por não mais poder cuidar do assunto. O meu sócio, diante disso, acabou revendendo os dois apartamentos tipo casa a terceiros, e não se falou mais no assunto.
Enquanto essas coisas aconteciam, de uma hora para outra correu na cidade a notícia de que o tal solteirão tinha morrido, e surgiu um zum-zum a respeito da herança que deixava, porque era, como o irmão, proprietário de muitos imóveis. O irmão e a cunhada tornaram-se, de repente, figuras faladas: parece que muita gente sabia da situação, da ambição, da ganância, e os comentários se sucediam.
Uma duas semanas mais tarde, entretanto, surgiu uma bomba: a tal "senhorita de idade" apareceu com um advogado exibindo dois documentos desconcertantes: uma certidão de casamento datada de um mês antes do falecimento do solteirão, com o qual teria vivido por vários anos fazendo-se passar, aos olhos de todos, por uma simples empregada doméstica. E de um testamento mediante o qual o marido, que já era sexagenário, a fez sua herdeira universal. Pareceu que o testamento datava de bem antes do casamento.
Como disse, o que menos se espera é o que geralmente acontece: ficamos finalmente sabendo a quê herdeiros o solteirão esquisito aludia quando disse que era melhor deixar tudo para os herdeiros. E ninguém podia ter imaginado que quem levaria a melhor naquela contenda, ironicamente, seria a "senhorita de idade".

Thursday, November 13, 2008

Oceano de lama

Luiz A. Góes

Estamos passando por uma inversão de valores generalizada: a cada dia assistimos, cada vez mais perplexos, à degradação moral produzida pelos atos e atitudes das chamadas autoridades mais altas da nação, os "membros mais altos dos chamados três poderes", e dos poderosos que dispõem de recursos suficientes para descaradamente comprar esses "membros mais altos dos três poderes", os quais estão seguramente convencidos de que podem fazer o que quizerem porque para êles a lei não existe, ou se existe não funciona, ou só funciona quando quizerem e do jeito que quizerem. Não há limites para sua ousadia.
Agora mesmo vemos o delegado que efetuou as investigações contra um certo banqueiro passar à condição de investigado e talvez de indiciado por crimes inventados, como as acusações que lhe fazem de ter vazado informações sôbre as investigações, de ter efetuado escutas ilegais, etc, etc, etc. Enquanto isso, o tal banqueiro, visivelmente mais do que culpado de todas as acusações que lhe foram feitas pelo tal delegado, e seguramente de muitas mais falcatruas que não chegaram a ser reveladas, fica sendo beneficiado por habeas corpus absurdos e leve e solto para destruir provas, praticar outras ilicitudes e, pasmem, chegar até a mover ações de diversos tipos contra os servidores que tiveram a "ousadia" de investigá-lo e acusá-lo.
Certa vez, durante os govêrnos militares, uma comissão do govêrno encarregado de analisar projetos que contavam com o apôio de recursos públicos, seja empréstimos e até mesmo participação acionária do BNDES, foi impedido de se pronunciar a respeito de um projeto que teria que ser reprovado: o órgão que procederia ao julgamento era presidido por um ministro, o qual já entrou na reunião, programada para apreciar diversos projetos, dizendo que o dito cujo projeto (que não tinha condições de ser aprovado) não seria discutido porque já tinha sido aprovado em "instância superior".
Encontrei dias depois os membros da tal comissão e percebi que os mesmos partilhavam de minha frustração quanto ao que tinha acontecido. Perguntei-lhes o quê pretendiam fazer a respeito daquele projeto. Responderam que quanto ao projeto especificamente, nada, mas quanto a todos os projetos futuros, pretendiam aprová-los sem qualquer discussão, porque não estavam dispostos a serem novamente desmoralizados e nem a terem o enorme trabalho de análise para depois ir tudo para o ralo por meio de decisões em "instância superior".
E assim, naquela época, como agora, sob um govêrno que se diz "da moral e da ética", desmoraliza-se os servidores públicos bem intencionados, dedicados e trabalhadores, que querem nada mais do que cumprir os seus deveres corretamente, enquanto se cultiva e prestigia o desmazelo e a cumplicidade com a ilicitude e o crime.
O Brasil nunca terá condições de vir a ser um grande país, forte e respeitado, enquanto continuar atolado no oceano de lama moral em que nadam os membros mais altos de seus poderes públicos e de escroques que os compram sistematicamente.
O povo brasileiro precisa aprender a enxergar essas coisas e a votar corretamente para limpar o país dessa escória que o desonra, em lugar de aderir ao "sistema" vendendo-se por merrecas como bolsa-esmola e equivalentes.

Monday, November 10, 2008

Lembranças de São Paulo

Luiz A. Góes

Recebi hoje umas fotos antigas da cidade de São Paulo, e comecei a me lembrar de minha meninice e adolescência na grande metrópole.
Minha família foi residir na capital paulista em 1945, quando eu ainda não tinha 7 anos de idade, no bairro de Pinheiros. Foi lá que vi, pela primeira vez, um oriental, com seus olhinhos apertados, na feira-livre a que fui com meu pai num domingo de manhã. Eu tinha visto antes um tio com dor de dentes, com o rosto inchado e o olho do lado do dente quase fechado. Quando vi o japonês, fiquei imediatamente com pena dele porque pensei que devia estar com muita dor de dente, - e devia ser em todos os dentes, porque os dois olhos estavam quase fechados. Logo em seguida vi outro, na mesma barraca, também com os olhos quase fechados, e fiquei ainda mais penalizado. Depois apareceu outro, e mais outro, e mais outro, e fiquei pensando que dor de dente devia ser uma coisa terrível, uma doença que pega, e devia estar havendo uma epidemia... Nunca me esqueci, e só bem mais tarde minha mãe conseguiu me fazer entender que os orientais eram daquele jeito mesmo.
Mas conheci o centro de S. Paulo em grande parte como aparece nas fotos que recebi, no tempo em que a gente ainda ia ao centro para passear na rua, andar de bonde, ver as meninas fazendo o footing ao longo dos carrões que os filhos de famílias abastadas estacionavam ao longo das calçadas nas ruas e avenidas mais movimentadas. Naquele tempo não havia placas indicativas de qualquer espécie a não ser as dos nomes das ruas, e a gente tinha que conhecer a cidade e ter bom faro para chegar a qualquer lugar.
Eram bem poucas as famílias que tinham automóveis, e a gente se deslocava sempre de ônibus ou de bonde. Tomar taxi era um acontecimento muito excepcional. Em horas de grande apêrto cometia-se a "loucura" de tomar um daqueles famosos "lotações", que cobravam cinco vezes mais do que os ônibus e bondes. Mas era engraçado porque a rapaziada aproveitava as viagens de ônibus e bonde para namorar e para conversar: parecia que se vivia mais, o tempo passava mais devagar.
Aos domingos íamos à missa cedo, e depois ficávamos por lá para assistir à saída da missa seguinte, a famosa "missa das dez", que era frequentada pela maioria das garotas. Mas era só para olhar mesmo, no máximo de vez em quando trocar algum olhar mais significativo com alguém, porque morríamos de vergonha caso ocorresse algo mais do que isso. Não havia televisão, e para quem não tivesse planos para ir mais tarde a um cinema aquele era o espetáculo do dia.
Não era por acaso que as quermesses na paróquia tinham tanto sucesso! Trocava-se bilhetes por meio do correio secreto, dedicava-se músicas encomendadas ao "som" a alguma pessoa que nos interessava, ficava-se tentando adivinhar quem seria quando se recebia algum daqueles misteriosos bilhetes ou alguém nos dedicava uma música qualquer, - a música nunca interessava tanto quanto saber quem a tinha dedicado, e não era muito fácil.
De vez em quando havia uns bailinhos ao som da vitrola em alguma casa de amigos, e lá íamos nós, apenas para no fim ficarmos quase o tempo todo só olhando e sem coragem de tirar as meninas para dançar.
Foi engraçado quando, passados muitos anos, mais de três décadas para ser exato, a turma do bairro resolveu fazer uma festa para comemorar os vinte e cinco anos da turma da Praça Cornélia, que ficava em frente à igreja onde nos reuníamos: todo mundo casado, casado e descasado, viúvo, alguns poucos ainda solteiros, mas já então todos bastante soltos e falando com todos sem qualquer inibição. Como éramos suburbanos no nosso tempo de adolescentes!
Éramos felizes e não sabíamos.