Observador Isento (Unbiased Observer)

A space for rational, civilized, non-dogmatic discussion of all important subjects of the moment. - Um espaço para discussão racional, civilizada, não dogmática de todos os assuntos importantes do momento.

Wednesday, August 08, 2007

Mais lembranças do tempo da guerra

Luiz A. Góes
Desde que me conheço por gente, e até terminar, o assunto guerra era corriqueiro e diário em minha vida e em minha casa. Nasci em 1938, quando a Segunda Guerra Mundial estava começando, e sendo meu pai militar, era inevitável que se falasse nisso o tempo todo, até mesmo porque residíamos em vilas militares ou nas proximidades de quartéis onde meu pai servia, ou mesmo pelo fato de que nossos círculos sociais eram formados predominantemente por famílias de militares.
Escrevi recentemente algumas lembranças sob o título "Terminou a guerra", e alguns amigos começaram a me provocar a respeito de outros pontos. Minhas lembranças não são muitas e nem, talvez, muito relevantes, porque eu era muito jóvem quando essas coisas aconteceram. Mas não custa tentar relatar mais algumas coisinhas.
Lembro-me, desde que comecei a entender o que se falava, que diariamente meu pai fazia a minha mãe, no final do dia, um resumo do que tinha se passado e do que se podia eventualmente prever, porque com a possível entrada do Brasil na contenda a possibilidade de meu pai, oficial de infantaria, ser incluido nos contingentes brasileiros era bastante provável. Ouvir a Hora do Brasil todos os dias, e os boletins do Repórter Esso pelo rádio eram coisas obrigatórias, - embora eu ainda estivesse longe de entender o quê significava tudo aquilo.
Eram dias de angústia, que eu percebia porque via minha mãe frequentemente chorando após ouvir o que meu pai lhe dizia.
Nas férias escolares, costumávamos ir, minha mãe, minhas irmãs e eu, passar algum tempo com meus avós em Santa Catarina. Meu pai, durante esses períodos, tentava ajustar suas próprias férias, ou conseguir alguma folga, para juntar-se a nós por períodos mais curtos.
Minha avó tinha muitos filhos, irmãos de minha mãe, em idade de serviço militar, e alguns servindo naquela época, de modo que além da angústia relacionada com a situação de meu pai, minha mãe se preocupava o tempo todo com a de seus irmãos.
Um dia, estávamos em Porto União quando chegou um telegrama de meu tio Pedro, dizendo que passaria por Porto União de trem no dia seguinte. Minha avó ficou extremamente perturbada, e num instante toda a família só falava naquilo. Foi em 1943, eu devia estar com 5 anos no máximo, mas me lembro que meu avô e os demais homens adultos da família estavam ausentes ou por alguma razão ficaram impedidos de ir à estação na noite seguinte, - porque o trem passaria por lá por volta das 9 horas da noite.
Mais ou menos às 8 e meia, fomos todos para a estação, minha avó, minha mãe, minhas tias, um tio que tem a minha idade e eu. Mais ou menos na hora prevista chegou um trem cheio de soldados.
Ficamos olhando para aqueles vagões cheios, mas meu tio não aparecia. Depois de algum tempo olhando à esquerda e à direita, nós o vimos desembarcar de um outro vagão lá adiante, mas em lugar de vir em nossa direção êle se dirigiu a algum ponto em baixo do vagão, de onde retirou um enorme embrulho (pelo menos para mim aquele embrulho era enorme naquela época: hoje não sei se diria a mesma coisa).
Quando se virou com o embrulho, minha avó já estava diante dele. Todos se abraçaram e meu tio disse que o batalhão em que servia estava sendo removido para o norte porque ia ser incluído na Força Expedicionária Brasileira. E em seguida entregou o embrulho à minha avó dizendo que não teria como usar aquelas coisas, - os seus trecos pessoais, - no lugar para onde ia.
Minha avó, minha mãe e minhas tias começaram a chorar desconsoladamente, enquanto nós, crianças, permanecíamos confusos, sem entender imediatamente o quê se passava.
Conversaram mais alguns minutos, até que soou o apito e meu tio embarcou de novo depois de abraçar em despedida sua mãe e suas irmãs.
O trem partiu e voltamos andando para casa. Minha avó chorou o tempo todo e ainda chorava quando nos puseram na cama meio às pressas naquela noite.
Nos dias e semanas seguintes, frequentemente se falava no tio Pedro, que não tinha mais dado notícias, o que se repetiu até o momento de voltarmos para o Rio, onde estávamos residindo. (Nosso local de residência mudava constantemente, com as frequentes transferências a que meu pai estava sujeito: meu curso primário, por exemplo, foi feito aos retalhos em escolas de três estados diferentes, e eu ficava maluco tendo que aprender a desenhar o mapa de um novo estado a cada passo.)
No Rio, pouco depois, minha mãe teve que ser submetida a uma cirurgia. Lembro-me que morávamos na parte superior de um prédio de dois andares. Não me lembro do quê havia em baixo, mas a porta de nossa casa dava diretamente para a rua, e subia-se uma longa escada para chegar em casa de verdade. Meu pai tinha chamado uma de minhas tias para tomar conta de nós enquanto minha mãe estava hospitalizada, o que levou muitos dias, e quando ela voltou para casa eu vi o meu pai chamar o seu ordenança para ajudar a levá-la escada acima: os dois fizeram uma espécie de "cadeirinha" unindo os braços, na qual minha mãe se sentou, e assim a levaram para dentro de casa.
Logo depois disso, e ainda durante a convalescença de minha mãe, meu pai veio com alguma notícia que a colocou em desespero. Lembro-me porque ficou muito alterada quando ouviu o relato da situação que meu pai lhe fazia, e porque a partir daí começou a chorar a cada passo. Naquele tempo os adultos tentavam esconder muitas coisas das crianças, de modo que ficávamos constantemente sem entender o quê se passava. Mas eu ficava matutando que tinha que ser alguma coisa relacionada com a tal de guerra, que eu não sabia direito o quê era, porque só se falava nisso.
Por algumas semanas a coisa ficou nesse pé, até que um dia meu pai disse qualquer coisa e vi minha mãe exclamar: "Graças a Deus!"
Depois disso, meu pai foi transferido para Quitauna, em São Paulo, onde moramos por algum tempo na Vila Militar, até que foi removido para a Escola Preparatória de Cadetes de São Paulo e acabamos nos mudando para a cidade grande.
Passados alguns anos, verifiquei que meu tio Pedro estava são e salvo em Porto União, numa das viagens que fizemos para lá. Ninguém me contou nem explicou nada: eu apenas vi. Parece que ao fim e ao cabo seu batalhão não foi incluido na Fôrça Expedicionária e voltou para o sul.
E mais alguns anos se passaram antes que meu pai finalmente me explicasse o quê tinha acontecido no Rio de Janeiro: foi no dia em que chegou em casa com a notícia tenebrosa de que o navio tinha afundado, o que deixou minha mãe consternada: sempre muito religiosa, ela foi imediatamente acender uma vela e fazer uma oração.
Aquela história de navio afundado me deixou extremamente curioso e comecei a fazer perguntas. Meu pai então explicou que quando estávamos no Rio sua unidade tinha sido repentinamente transferida para Recife, com órdens para embarcar dentro de poucas semanas.
Era apavorante porque minha mãe estava convalescendo de sua cirurgia, - naquele tempo isso levava muito tempo, - e porque seria uma viagem por mar na época em que navios brasileiros estavam sendo afundados, presumivelmente por submarinos alemães. Com a entrada do Brasil na guerra, os navios que transportavam tropas seriam os mais visados, logicamente, ou seja, ter que viajar por mar era o mesmo que entrar em guerra.
Depois de algum tempo de extrema angústia e ansiedade, um capitão pernambucano que servia no Rio ficou sabendo da situação de nossa família e procurou meu pai para propor uma troca: êle era solteiro e tinha família em Recife, desejando muito ser transferido para lá. Propôs ir em lugar de meu pai, e meu pai o substituiria na unidade em que estava servindo. Foram aos respectivos comandos, e a troca foi aceita, de modo que meu pai permaneceu no Rio.
A história do navio foi a seguinte: devido à ação dos submarinos alemães, os navios faziam várias manobras despistatórias quando deixavam um porto, geralmente à noite. A manobra mais comum era zarpar e depois de um certo ponto retornar com as luzes totalmente apagadas, repetindo isso por vários dias até que um belo dia partia e seguia viagem de uma vez por todas. Já pensaram a ansiedade de quem estava naqueles navios?
Pois desde que a troca com o tal capitão foi feita, meu pai não tinha mais ouvido falar sôbre o navio, até que, no dia em que me contou essa história, tinha ficado sabendo que apesar de todas as manobras o navio tinha sido torpedeado e afundado, morrendo quase todos a bordo. Minha mãe foi, seguramente, rezar pelo capitão ao qual meu pai teria ficado devendo a vida.
Estávamos em Quitauna uma tarde quando o sino da igrejinha do local começou a badalar fora de hora. O ordenança de meu pai permanecia boa parte do dia em nossa casa, ajudando minha mãe nos trabalhos que tinha com a casa e seus quatro filhos, e me lembro que ela e o ordenança começaram a perguntar um ao outro porquê o sino estaria tocando.
De repente, o rapaz, que se chamava Mário (nunca esqueci), exclamou: "Deve ser porque acabou a guerra!"
Num instante, todas as esposas dos oficiais que moravam naquela Vila Militar estavam se falando por cima dos muros, porque a notícia se espalhou como um ráio. A expressão mais ouvida naquele dia foi "Graças a Deus!"
Lembro-me de minha mãe, mais tarde no dia, falando sôbre os vários protagonistas principais da contenda, de cujos nomes só guardei alguns: o do Getúlio, o do Hitler, o do Mussolini, e o do Roosevelt. Lembro-me de ela ter dito que "o Roosevelt morreu", e eu fiquei pensando que êle tinha morrido na guerra. Mas da história que ela me contou naquele dia eu não me lembro mais nada.
Nessa época começou-se a falar muito de uma tal de bomba, - a bomba atômica, - mas ainda levou vários anos para eu começar a compreender essa questão, quando meu pai contou que com a explosão de duas daquelas bombas contra os japoneses, o Japão tinha se rendido imediata e incondicionalmente. Só então comecei a imaginar o horror que devia ser a explosão de uma bomba daquelas: foi quando prenderam o casal Rosenberg por espionagem, porque tinham ensinado os russos, já em plena Guerra Fria, a fazer a bomba atômica.
Daí por diante, aposto que todos vocês sabem de sobra.

Tuesday, August 07, 2007

Terminou a guerra

Luiz A. Góes

Foi em 1945 e eu ainda não tinha completado 7 anos de idade. Mas me lembro como se fosse hoje.
Vivíamos, em São Paulo, as incertezas e alterações que o fim da guerra trazia. Meu pai chegou em casa um dia, depois de muito tempo, com um pão. Começamos a cortá-lo em fatias e passar manteiga, para constatarmos desapontados que aquele pão, de uma côr escura e extremamente duro e pesado, estava muito longe de se parecer com aqueles pães que minha avó, lá no sul, fazia.
Pareceu que tinham esquecido de usar fermento, parecia um pedaço de borracha, intragável e incomível.
Repentinamente as coisas se sucediam com rapidez vertiginosa, embora eu não consiga me lembrar de detalhes. Mas me lembro que meu pai nos colocou minha mãe, minhas irmãs e eu, que era o mais velho, num trem rumo a Santa Catarina. Viagem longa e cansativa, e quando o trem fez parada em Ponta Grossa, no Paraná, uma tia que lá residia nos esperava na estação.
Vendo o estado de cansaço da irmã, assustou-se e foi logo dizendo para jogar tudo nas malas e passá-las pela janela, porque ficaríamos alí mesmo, nada de prosseguir viagem naquelas condições. Meu tio apoderou-se das passagens e correu para o guichê a fim de obter um reembolso correspondente ao restante da viagem.
E assim ficamos em Ponta Grossa, onde vivemos dias inesquecíveis com aqueles tios de saudosa memória.
Um dia apareceu lá, de repente, o meu tio Gino, que era um de meus heróis, rapagão forte, bem disposto e de boa têmpera, sempre bem humorado e querendo agradar-nos. Veio com sua farda da fôrça aérea, à qual estava servindo. Tinha sentado praça em Curitiba, mas conseguiu ser transferido para a velha Porto União para tomar conta do campo da aviação, que era como se chamavam os aeroportos naquela época. Fiquei sabendo depois que êle era então o único representante da fôrça aérea na cidade, e passava os dias em casa, ajudando nos trabalhos do armazém de meu avô, mas sempre com os ouvidos apurados para qualquer barulho de avião que aparecesse, porque embora geralmente soubesse quando os aviões poderiam chegar, sempre havia alguns não programados. Quando chegava a hora, ou ouvia algum ronco, montava a sua bicicleta e voava para o campo da aviação, a fim de cuidar dos diversos serviços necessários, a qualquer hora do dia ou da noite, e com qualquer tempo.
Pois em Ponta Grossa foi anunciado que os soldados lá residentes que tinham ido para a Itália estariam chegando de volta à cidade num domingo à tarde, e que haveria uma grande recepção para êles. Minha mãe arrumou-nos a todos esmeradamente, como sempre fazia, e lá fomos para ver e aplaudir os soldados que retornavam.
Tinham passado uns cordões de isolamento nos dois lados de uma rua, uma espécie de descida suave, atrás dos quais o público poderia ficar para ver os soldados, que desceriam a rua. Esperamos um bocado e minha mãe deixou-me sentar na guia da calçada por baixo do cordão de isolamento, porque estávamos ficando cansados.
Lá para as tantas apareceram, de maneira esparsa, alguns soldados, para os quais batíamos palmas. Êles iam descendo a rua a passos meio trôpegos, a maioria sem nada na cabeça ou nas mãos, com os botões superiores das fardas de campanha que envergavam desabotoados, e olhando vagamente para a frente, raramente para os lados, com semblantes sérios. Muito diferentes do que eu tinha imaginado, ou seja, que viriam alegres, que haveria música, que estariam marchando, ou que estariam sendo esperados por gente que os abraçaria efusivamente.
Fiquei vendo aquilo e pensando, sem compreender nada, como teria sido a tal guerra de que tanto se falava.
Repentinamente um soldado que descia sozinho a rua, mais ou menos no meio dela e com o olhar esgazeado e o semblante inexpressivo de todos os demais, parou, virou-se para o meu lado, e começou a andar em minha direção. Eu, que batia palmas, parei e fiquei esperando para ver o quê iria acontecer.
Êle veio até mim, colocou a mão na minha cabeça e ficou me olhando, sem nada dizer, esboçando um vago sorriso de que nunca me esqueci. Ficou assim, imóvel, por alguns segundos, e depois retomou a sua caminhada rua abaixo.
As pessoas que estavam em volta ficaram silenciosas, olhando a cena. Ninguém dirigiu a palavra a ninguém. Foi marcante.
Depois de algum tempo os soldados pararam de passar e a multidão começou a se dispersar. Fomos andando distraidamente, descendo a rua até chegarmos a uma praça. De repente minha mãe começou a perguntar por uma de minhas irmãs, que inexplicavelmente não parecia estar conosco embora tivesse estado o tempo todo. Foi ficando cada vez mais aflita, e uma mulher, ouvindo-a falar perguntando por minha irmã, disse: "É uma menininha moreninha? Ela estava chorando porque tinha se perdido da mãe, e duas moças foram levá-la até a Rádio, para anunciar…" e assim possibilitar que os pais fossem encontrados.
"Para quê lado fica a Rádio?" perguntou o meu tio herói. "Lá para cima," respondeu a mulher. Olhamos todos na direção indicada, que era a rua em descida da qual tínhamos vindo, e avistamos, lá no alto, duas mulheres ladeando uma menina, que seguravam pelas mãos.
Meu tio herói não teve qualquer dúvida: sem nada dizer saiu em disparada ladeira acima, e de lá trouxe no colo minha irmã, que veio sorridente conversando com êle. Logo depois as duas moças se aproximaram também, repetindo a explicação da mulher: que iam levá-la à Rádio para anunciar. Lembro-me de minha mãe agradecendo.
Tempos diferentes, tempos tranquilos: éramos felizes e não sabíamos.