Observador Isento (Unbiased Observer)

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Wednesday, January 30, 2008

Porto de areia e outras lembranças

Luiz A. Góes
Um dia o meu tio herói, - o Gino, aquele que sempre arranjava alguma coisa interessante e aventurosa, para eu e meu outro tio, o Lule, inseparável e inesquecível companheiro de meninice, fazermos, disse: "Vamos ao porto de areia".
Era uma tarde quente, e eu estava com uns 8 ou 9 anos de idade. Não tinha a mínima idéia do que poderia ser um porto de areia. Mas se o tio Gino convidava eu estava imediatamente pronto a seguí-lo incondicionalmente.
Fomos caminhando até a beira do rio Iguaçú, e em determinado momento êle parou e, olhando para a outra margem e fazendo uma espécie de canudo com as mãos, abriu os pulmões e gritou: "Pedroooooooo".
O grito ecoou bonito e logo depois vimos um homem sair de uma pequena casa no outro lado do rio, dirigir-se a um pequeno barco que estava ali amarrado e que naquelas plagas se chamava bote (deve ser corruptela de "boat", em inglês), e atravessar o rio com vigorosas remadas em nossa direção.
Quando chegou, pareceu-me um gigante: era meu outro tio, aquele que um dia eu tinha visto passar num trem de soldados indo para a guerra, e que tinha desaparecido de minha vista desde então. Estava só de calção, queimado de sol, e muito alegre foi logo nos embarcando no bote e levando para a outra margem do rio, novamente com remadas vigorosas. Foi uma alegria revê-lo são e salvo.
O tio Gino levava uma cesta com mantimentos, que tinham sido enviados para o tio Pedro pela minha avó. O tio Pedro operava o porto de areia que meu avô então mantinha no outro lado do rio, e ficava por lá muitos dias sem vir para casa, morando naquela casinha em companhia de alguns homens que trabalhavam com êle.
Fiquei deslumbrado com a figura do tio, com a casinha, com as enormes barcas em que recolhiam areia do fundo do rio, jogando umas enormes varas com uma espécie de balde ou caneca na ponta para depois recolhê-las, em pé nas bordas extremas do barco, e esvaziar as tais canecas dentro dele. Mais adiante, quando o barco se enchia, aportavam e o esvaziavam, colocando a areia para secar. Vi os montes de areia branquinha mas não vi descarregar os barcos, que iam afundando cada vez mais à medida que se enchiam até ficarem com água quase nas bordas.
Em volta da casinha havia galinhas, porquinhos, uma infinidade de pequenos animais, e o tio Pedro sentado num tamborete lá dentro contava as suas peripécias ao tio Gino, uma espécie de relatório a ser transmitido ao meu avô, enquanto nós nos divertíamos lá fora tentando agarrar um daqueles porquinhos.
Lá para as tantas, com a tarde caindo, os dois tios vieram lá de dentro com sabonetes e toalhas para tomar banho, porque o sol tinha estado escaldante o dia inteiro. Eu e o Lule ainda tínhamos muito medo da água, e fiquei fascinado com aquelas duas figuras com água pelos joelhos se lavando na água do rio. Insistimos para que êles nadassem para que pudéssemos ver. Deram umas braçadas para cima e para baixo, e depois enxugaram-se e se vestiram.
Já com o dia findo, quase escuro, o tio Pedro levou-nos de volta para a outra margem e retornou ao seu abrigo no outro lado do rio.
Não o vi mais por alguns anos, quando, já adolescente, passei nova temporada por lá. Quando chegamos, e como de costume, minha mãe tinha longas conversas com minha avó, que a colocava em dia com os assuntos da família, sempre muito numerosa.
A certa altura ouvi falarem no casamento do tio Pedro, e prestando um pouco mais atenção à conversa, - naquele tempo as crianças (adolescente ainda era criança) não podiam se meter ou dar palpites nas conversas dos adultos, - entendi que o tio Pedro já tinha se casado havia algum tempo, e esse algum podia ser até bastante.
Minha avó continuou contando a história e a ouvi dizer que tinha chegado uma carta mas o tio Pedro não a tinha respondido. Mais adiante tinha chegado outra carta, e novamente êle não a tinha respondido. Chegou uma terceira quarta, e a mesma coisa se repetiu. "Em lugar da quarta carta veio ela própria!", exclamou minha avó, falando em têrmos extremamente elogiosos de uma certa Amábile, que finalmente tinha se casado com o tio Pedro. Nunca fiquei sabendo da história com mais detalhes, como êles se conheceram, nem nada, mas minha avó dizia de vez em quando: "Ela é decidida, trabalhadeira, só vendo…"
Descobri depois que o tio Pedro estava morando com sua família numa de duas casas de madeira que havia num terreno encravado aos fundos da propriedade do meu avô: era um terreno bastante alto, e o acesso a êle era feito por meio de uma espécie de escada de terra que me dava um pouco de medo. O terreno da frente tinha sido escavado para ficar ao nível da rua, o que deixou o terreno de trás naquela situação desconfortável.
E só descobri porque de vez em quando minha avó preparava uma cesta com mantimentos e mandava o tio Lule levar lá para o fundo. Comecei a ir atrás dele mas não subia a escada: esperava ali em baixo enquanto êle ia até lá em cima e voltava com a cesta vazia.
Um dia, - eu devia estar com uns 11 ou 12 anos, - enchi-me de coragem e subi a escada com o meu tio, mas quando lá chegamos eu praticamente não vi ninguém: a tia Amábile foi apenas uma imagem fugidia por trás de uma cortina da janela, através da qual pegou a cesta e depois a devolveu. Fiquei intrigado com aquilo, mas não comentei porque ouvi um chorinho de criança pequena lá dentro.
Depois disso os dias foram passando e num determinado domingo (acho que era domingo) minha avó deu-me a cesta com mantimentos para levar até lá (não sei porquê, naquele dia o tio Lule não estava disponível).
Quando me aproximava da tal escada de terra, que naquele dia devia estar escorregadia porque tinha chovido, encontrei o tio Pedro, como sempre sorridente, envergando um paletó escuro.
Entreguei-lhe a cesta, intimamente dando graças a Deus por não ter de enfrentar a tal escada, e êle me disse, com os olhos brilhantes: "Tem mais um soldado lá em casa…"
A frase me surpreendeu, não a entendi, e êle, acho que vendo que eu não tinha entendido, repetiu: "Essa noite chegou mais um soldadão lá em casa…"
Só então compreendi que tinha nascido um bebê, um de meus primos, e que a tia Amábile vinha evitando aparecer porque estava grávida – naquele tempo as mulheres se recolhiam bastante quando estavam grávidas, tanto quanto me lembro.
Dias mais tarde retornei com minha mãe e minhas irmãs para São Paulo e nunca mais vi o tio Pedro, a não ser em fotografias que de vez em quando me enviavam. Mas sei que êle deixou uma bela prole, e que deixou saudade.