Observador Isento (Unbiased Observer)

A space for rational, civilized, non-dogmatic discussion of all important subjects of the moment. - Um espaço para discussão racional, civilizada, não dogmática de todos os assuntos importantes do momento.

Wednesday, February 21, 2007

Amigos Milenares

Luiz A. Góes
Numa sexta-feira de verão, almoçando com o Martinho Prado Uchoa na lanchonete a que costumávamos ir, lá no prédio em que ficavam os escritórios da COSIPA em São Paulo, êle inesperadamente me convocou para acompanhar uma visita à usina de Piaçaguera que seria efetuada no dia seguinte por um certo grupo de pessoas de suas relações.
A convocação foi feita em forma de convite, mas convite de vice-presidente era órdem, de modo que no dia seguinte de manhã lá estava eu, debaixo daquele sol escaldante costumeiro, esperando pelo Martinho e seu grupo na entrada do prédio da administração da usina. Vieram num ônibus, no qual embarquei também, o qual se encaminhou em seguida para a entrada da usina e foi percorrendo lentamente sua avenida principal enquanto o Martinho fazia as vêzes de relações públicas e guia, explicando que "ali, à nossa direita, fica a laminação. Bem à esquerda fica a fábrica de oxigênio. Mais adiante, também à esquerda, fica a aciaria, onde se faz o aço. Mais à frente, ainda à esquerda, fica o alto-forno, onde se extrai o ferro do minério, e à direita fica a coqueria, onde se produz o coque que serve para tirar o ferro do minério no alto-forno."
Aquela maneira de conduzir a coisa me pareceu bem peculiar, porque o Martinho era metalurgista e seguramente tinha condições de dizer coisa muito mais elaborada, além do fato de estarmos apenas percorrendo a avenida principal sem entrar em nenhuma unidade produtiva. O grupo de visitantes era um tanto peculiar também: havia um senhor de certa idade sentado ao lado do Martinho, o qual parecia conhecê-lo bastante, porque trocavam impressões, faziam comentários entre si, e sorriam repetidamente durante todo o tempo. Esse senhor usava uma boina e um lenço ao pescoço, que me chamaram a atenção mas a minha santa ignorância custou a permitir que eu atinasse logo com a coisa. O restante do grupo era formado por gente bem mais jóvem, rapazes e moças. Eram estudantes de antropologia, ou de arqueologia, da Universidade de São Paulo. O senhor de boina chamava-se Duarte: não me lembro de seu primeiro nome (alguém me ajudaria a lembrar?), mas depois me acostumei a ler seu nome várias vêzes nos jornais de São Paulo. Era professor da Universidade, e aqueles jóvens eram seus alunos.
Achei curioso que um grupo de universitários daquela área de estudos se interessasse em conhecer uma usina siderúrgica, mas a coisa foi ficando mais clara quando o ônibus começou a enveredar por um caminho que começava a contornar o Morro da Tapera, lá por traz do alto-forno.
O Morro da Tapera era a única elevação existente no terreno da usina naquela época, e como o restante era quase todo coberto por mangues, pensou-se logo em usar material do referido morro para aterrar todo o terreno em volta. Entretanto o problema, quando a construção da usina começou, era como chegar ao tal morro e trazer material de lá, porque logo se verificou que era um tanto instável e precisava de obras de contenção para impedir que ameaçasse esparramar-se sôbre a usina, podendo a idéia de desmontá-lo vir a constituir um tiro pela culatra. Mais tarde, quando a companhia adquiriu a chamada Ilha dos Amores, a idéia de usar material do Morro da Tapera para aterrá-la voltou à baila, não sei se algum dia foi levada adiante.
A história da tal visita começou alguns anos mais cedo, quando o colega encarregado das obras de contenção do Morro da Tapera foi procurado por um de seus subordinados que lhe disse, muito assustado, ter ocorrido algum crime naquele local. Alarmado, o colega foi até o ponto indicado pelo seu auxiliar e constatou que a lâmina do trator que fazia a movimentação de terra tinha descoberto uma porção de ossos, entre êles alguns crânios humanos. A providência imediata que òbviamente se impunha era chamar a polícia, que lá compareceu no mesmo dia e instaurou inquérito. A inspeção do local revelou existirem ali várias ossadas, talvêz denunciando alguma ação criminosa de proporções incomuns.
No dia seguinte os jornais da Baixada Santista publicaram, nas colunas de ocorrências policiais, o achamento das tais ossadas misteriosas, o que chamou logo a atenção do pessoal da Universidade de São Paulo, que providenciou para que o local fosse interditado tanto para o pessoal da usina como para a polícia, porque reconheceu tratar-se de um daqueles sítios conhecidos pelo nome de Sambaqui.
Eu era extremamente ignorante a respeito daquilo, de modo que não me interessei muito pela coisa na época, mesmo porque quando o assunto começou ainda estávamos na fase heróica de construir a usina e colocá-la em operação, não havendo mãos a medir e nem tempo para mais nada, já curto demais para descansar nos finais de semana em que frequentemente dávamos plantão na usina.
Numa ocasião em que tive que ir ao alto-forno durante um dos tais plantões, aproveitei para ir até o tão falado Sambaqui, onde havia algumas pessoas trabalhando com umas pequenas ferramentas, pacientemente escavando, escovando, pincelando uns ossos que iam ficando visíveis. Estavam preocupados em impedir que adentrássemos a área de seus trabalhos e foram parcimoniosos em suas informações, dizendo apenas que se tratava de povoações muito antigas que haviam existido naquela área.
Na visita com o grupo do Martinho fiquei bastante surpreendido com o que vi: as escavações, pacientemente conduzidas durante todos aqueles anos, tinham se aprofundado muitos metros, e várias dezenas de esqueletos já haviam sido encontradas, - creio que no final foram mais de cinquenta, - além de uma enorme quantidade de objetos como ferramentas de pedra e de ossos, adornos como colares de contas e de escamas de peixes e coisas do gênero, além de uma infinidade de cascas de ostras e coisas semelhantes.
O professor explicou que a palavra Sambaqui, que também se diz Tambaqui, é de origem indígena, e vem de "tambá", conchas, e "qui", monte cônico. Trata-se, em realidade, de um local de sepultamento que era usado por aquela gente, e a datação dos esqueletos encontrados tinha revelado que os mesmos tinham pelo menos 7000 anos de idade! De repente me dei conta de que quando a civilização egípcia começava a se formar, uns 5000 anos antes da nossa era, aquele povo já lá estava enterrando seus mortos debaixo de montes de conchas! O professor Duarte disse que aquele sítio não tinha uma profundidade muito grande porque estava na encosta de um morro de proporções bem maiores, mas que outros sítios do gênero podiam alcançar várias dezenas de metros de altura. E mais, que existem ocorrências de Sambaquis em toda a costa leste brasileira ao sul da Bahia. Explicou ainda que povos indígenas mais recentes ocuparam os locais antes ocupados pelos homens do Sambaqui, de modo que nesses locais frequentemente se encontram objetos mais modernos, de cerâmica e outros, sendo necessário saber distinguir uma coisa da outra. Pelo que me lembro, no tal Sambaqui de Piaçaguera não havia nada de cerâmica: era, aparentemente, um sítio virgem nesse particular.
Depois desse episódio, comecei a prestar mais atenção ao assunto, mas tudo o que li a respeito até hoje não trouxe nenhum esclarecimento sobre essa gente, de onde veio, qual a sua origem. Pelo que vi, sei apenas que eram iguaizinhos a nós, ou pelo menos os esqueletos eram idênticos aos que eu conhecia das aulas na escola secundária e dos livros de medicina do lar que tinha em casa, tanto em feições como em dimensões.
No almoço que se seguiu, o Martinho disse, com a sua verve, que naquela usina tínhamos homens de aço e também homens enferrujados, como aqueles amigos milenares que lá tinham ficado durante milhares de anos à nossa espera. Foi um sábado bastante instrutivo para mim, e mais recentemente andei procurando colher alguma informação mais detalhada sobre o Sambaqui da COSIPA, mas nada encontrei entre o que se encontra publicado na Intenet. Isso me parece curioso, porque em outros sítios nela citados e descritos até com algum detalhe não consta terem sido encontrados tantos esqueletos quantos foram retirados do Sambaqui de Piaçaguera.
Na época da visita eu já trabalhava em São Paulo, mas continuava residindo em Santos e me encontrava constantemente com o Maro Chioccarello, que continuava na usina e, ouvindo o meu relato, começou a acompanhar o assunto do Sambaqui mais de perto, além de efetuar visitas à Ilha dos Amores, para a qual havia planos de numerosas obras de expansão da usina, como veio a ocorrer mais tarde. Nela o Maro encontrou umas ruinas misteriosas, cobertas de mato e aparentemente muito antigas, que planejávamos explorar algum dia, mas vim a ser transferido para o exterior e não mais soube de nada a respeito delas.
O Maro, que era um grande colecionador de "causos" e contador de histórias, infelizmente faleceu antes de nos contar mais alguma coisa a respeito dessas ruinas, que acredito terem sido destruidas durante as obras que se seguiram. Talvêz algum dia êle me conte essa história, quando nos encontrarmos novamente.

Sunday, February 18, 2007

Mancadas internacionais

Luiz A. Góes
Na minha primeira viajem aos Estados Unidos eu já me considerava meio veterano de viajens internacionais, depois de duas temporadas européias, mas não deixei de dar boas mancadas logo de saída.
Começou com a compra das passagens: íamos para Cleveland, no Estado de Ohio, e no meio da passagem havia um papelucho a mais que só vim a entender o que era depois de desembarcar no aeroporto internacional de New York, o JFK, como é conhecido. O tal papelucho dava direito a translado do JFK para o aeroporto de La Guardia, de onde decolaria o vôo doméstico para Cleveland, coisa que não haviam me informado ou a que eu não prestei atenção suficiente quando recebi as passagens. Seria uma viagem de helicóptero, idéia à qual minha mulher e eu nem de longe estávamos preparados, mas resignadamente esperamos pelo tal helicóptero por algum tempo, até que informaram estarem suspensos todos os vôos por helicóptero devido ao mau tempo (era início de janeiro). Quase entramos em pânico, mas nos acalmamos quando o funcionário da Varig informou que podíamnos tomar um táxi e estaríamos no La Guardia dentro de meia hora mais ou menos, em tempo de alcançarmos o vôo para Cleveland: elementar, meu caro Watson!
Tomamos o táxi e lá fomos, apenas para descobrir, ao chegar ao La Guardia, que o nosso vôo tinha sido cancelado devido ao mau tempo em Cleveland. Mais uma vez desapontados, transferimos nossa reserva para o vôo seguinte e fomos procurar uma lanchonete para comer alguma coisa. Lá enfrentamos nossas primeiras dificuldades com o cardápio americano, que nunca tínhamos conhecido antes, mas no fim comemos e ficamos mais revigorados. Aguardáva-nos outra surpresa quando de lá saíamos: apareceu-nos pela frente um sujeito alto e magro, de capote e chapéu na cabeça, que fez uma pergunta em inglês da qual só entendi, por falta de prática, as duas últimas palavras, que eram… o meu nome!
O tal sujeito, vendo a minha cara, imediatamente repetiu a pergunta em bom português, e se identificou como sendo o Silvino, chefe do escritório da COSIPA em New York. Só então me dei conta de que podia ter pedido ajuda a êle antes de sair do Brasil, o que não havia me passado pela cabeça e nem ninguém havia mencionado. Êle foi ao La Guardia me procurar por iniciativa própria, e contou que tinha pedido que me chamassem pelos alto-falantes do aeroporto, porque tinha percorrido quase tudo e não tinha tido sinal de minha presença. Aconteceu que estávamos na lanchonete, onde os anúncios não eram ouvidos, o que o tinha levado a desistir, e estava se dirigindo à saída para ir embora quando nos encontrou totalmente por acaso, tendo arriscado a pergunta devido ao meu "jeitão", ou seja, estava na cara que eu devia estar um tanto perdido naquele aeroporto, com o vôo cancelado e esperando por um outro vôo que também veio, mais tarde, a ser cancelado, e assim sucessivamente até o fim do dia. A essa altura o Silvino já tinha ido embora, e resolvi telefonar-lhe para pedir uma sugestão sôbre o quê fazer. Mais uma vez a coisa foi bastante elementar: "Vá para um hotel aí perto do aeroporto para descansar e esperar pelo vôo de amanhã!"
Já contei que o Silvino, anos mais tarde, acabou me servindo como uma espécie de professor em assuntos de Estados Unidos, e em particular de New York, quando vim a ser chefe do mesmo escritório que êle chefiava por ocasião de minha primeira viajem aos EUA. Êle conhecia todas as jogadas, todos os "mocós", e sabia fazer com que as coisas ficassem mais fáceis e mais baratas de um modo geral, embora fosse um tanto duro de molejo em outros aspectos, do alto de seus ointenta anos.
Quando o Silvino me passou as contas do escritório, passou-me com elas uns abacaxis: o pessoal da empresa no Brasil frequentemente fazia pedidos de coisas que o Silvino tinha que arranjar e dar um jeito de mandar, e herdei essa incumbência. Herdei também a incumbência de acompanhar as pessoas, notadamente altos funcionários da empresa, em suas compras quando iam a New York, o que era em geral agradável mas às vezes implicava uns embaraços, porque o pessoal achava que por definição eu tinha que saber sem demora onde encontrar tudo o que queriam (como o Silvino), o que nem sempre era muito fácil. O Silvino os tinha acostumado mal, conseguindo inclusive quem fornecesse medicamentos à vista das receitas que enviavam do Brasil, quando se tratava de medicamentos controlados que não conseguiríamos normalmente sem uma receita emitida por médico americano. Além, evidentemente, de ser capaz de achar coisas bem incríveis que pediam de vez em quando.
Uma das coisas de que me lembro bastante bem eram as tais calculadoras HP-80, que tinham aparecido no mercado mais ou menos na época em que fui para o escritório de New York. Uns três anos antes eu tinha adquirido a minha primeira calculadora de bolso, capaz de fazer as quatro operações, por cem dólares. A evolução dessas maquininhas foi tão grande que hoje uma calculadora de bolso semelhante não custa mais do que uns cinco dólares, e com bateria solar. No curto período de três anos a Hewlett-Packard tinha desenvolvido calculadoras mais poderosas e lançado a HP-80, uma calculadora com funções financeiras que envaidecia os seus felizes possuidores quando as colocavam sôbre a mesa em reuniões de negócios, de modo que os pedidos de HP-80 se sucediam quase todas as semanas. O preço era 395 dólares e não havia meio de se conseguir preço menor, porque a demanda estava alta e a Hewlett-Packard não dava folga a seus distribuidores. Mandei pelo menos uma dúzia delas para o Brasil, após vencer uma resistência inicial do pessoal a mandar o dinheiro antecipadamente, porque o Silvino os havia acostumado mal, usando dinheiro da empresa nas encomendas para reposição posterior, coisa que resolvi não arriscar fazer.
Um belo dia chegou lá em "grand comité" um grupo de diretores, e como de costume cada um tinha uma listinha de encomendas. Fiz uma pequena reunião com êles para saber quais os ítens que queriam que eu providenciasse, ficando cada um deles com a sua própria lista para irem comprar pessoalmente.
Depois de algumas providências de trabalho, os diretores saíram às compras, tendo dispensado a minha companhia, pelo que dei graças a Deus, porque estava atolado de serviço. Lá pelo meio da tarde voltaram, e um deles me perguntou: "Quanto é mesmo que você paga pela HP-80?"
"395", respondi. O diretor surpreendeu-me então com uma revelação bem perturbadora: "Então você pode dispensar o seu fornecedor, porque está cobrando demais."
Fiquei confuso por alguns segundos, e perguntei: "Como assim?"
"Acabo de comprar uma por 250 dólares", respondeu o diretor, enfiando a mão numa sacola e puxando a caixa da HP-80. Fiquei lívido, mal podia acreditar no que estava ouvindo, ainda mais porque aquele podia bem ser o jeito dele de dizer que eu estava cobrando demais e enganando o pessoal.
Poucas vezes tenho presença de espírito para resolver situações como essas, mas naquele momento tive um lampejo de clarividência: pedi para ver a HP-80 que o diretor tinha comprado. Êle não parava de pilheriar, fazendo piadas e rindo delas, em companhia dos demais e diante do meu visível embaraço. "Pode ver à vontade", desafiou, passando-me a caixa. Vi logo que estava aberta, coisa que mencionei a êle, e a resposta foi que o vendedor tinha colocado a máquina dentro da caixa na presença dele para entregar-lhe, o que me deixou com pequena dúvida sôbre se devia mesmo abrir para conferir.
Não sei o quê me moveu a ir em frente, entretanto, e ao abrir a caixa nela encontrei uma pequena maquininha HP-22, com muito poucas funções além das quatro operações e que àquela altura não valeria mais do que uns 50 dólares.
Aí quem ficou lívido foi o diretor, que não sabia o quê dizer e olhava nervosamente para os demais, exclamando: "Mas como? Êle colocou a máquina na caixa na nossa frente!" Os outros também ficaram meio sem fala, e eu fiquei aliviado porque tinha acabado de desarmar uma verdadeira bomba, ao mesmo tempo que constatava a enorme ingenuidade dos diretores que se julgavam tão experientes e sagazes.
Por falar em sagacidade, um daqueles diretores apareceu por lá numa outra ocasião, aparentemente acompanhado pela esposa, - que não vi, - e foi extremamente auto-suficiente: saiu às compras e fez tudo o que tinha que fazer sem solicitar minha participação. Não fiquei, por sinal, sabendo o quê êle teria ido fazer lá, porque não se falou em trabalho, embora êle aparecesse no escritório de vez em quando. Numa das conversas disse que acabava de vir do Japão, e que ainda iria à Europa antes de retornar ao Brasil. Achei o itinerário meio esquisito, mas não tinha nada com aquilo, de modo que registrei mas me calei.
Quando êle apareceu para se despedir, disse que retornaria dentro de alguns dias. Tive então a idéia de sugerir que, se êle quizesse, poderia deixar parte de sua bagagem no escritório, trancada num armário, para não ter que carregá-la pela Europa afora: imaginei logo que êle teria seguramente feito compras no Japão, e seria um contrassenso levar tudo consigo para a Europa.
Mas novamente êle foi muito auto-suficiente e disse que eu não me preocupasse, que não havia necessidade. E lá foi êle para a Europa.
Uma semana depois reapareceu, conversou e saiu, sem dizer o quê iria fazer, e nem eu perguntei, embora tivesse, como de costume, me colocado à disposição para acompanhá-lo e para providências que êle solicitasse.
Passaram-se uns dois dias e o tal diretor apareceu no escritório bufando como um cão danado. E foi logo me dizendo para contactar os advogados da empresa em New York, porque estavam querendo passar-lhe a perna no hotel onde estava hospedado. Aquele hotel não existe mais, mas naquela época quase todo o pessoal da COSIPA que ia a New York se hospedava nele, e nunca tinha havido nenhum problema.
Muito constrangido, perguntei-lhe se podia me dizer qual seria o problema, para eu poder adiantar alguma coisa aos advogados, - um escritório de advocacia de Wall Street, daqueles caros como o diabo.
Êle ficou em silêncio por alguns segundos, após os quais pareceu ter decidido revelar a questão: ao partir para a Europa, tinha deixado um pacote com as compras feitas no Japão no "check room" do hotel. (Esses "check rooms" são como uma espécie de "guarda-casacos" que existem nos teatros, nos restaurantes, etc, mas destinados a bagagens, porque muitos hóspedes fecham a conta de manhã cedo antes de saírem para seus negócios do dia, quando deixam suas bagagens no "check room" e retornam no final do dia para apanhá-las antes de irem para os aeroportos ou estações de ônibus ou trens. Nesses "check-rooms" paga-se uma pequena taxa fixa por dia para deixar a bagagem, reconhecida mediante um pequeno boleto.)
Contou-me então que ao chegar da Europa tinha ido até o "check-room" do hotel e verificado que o seu pacote estava lá, como previsto. Naquela manhã tinha decidido verificar novamente, e o pacote tinha sumido! Reclamou junto à gerência do hotel, e o gerente disse-lhe prontamente que pagaria a indenização prevista no boleto, que era de US$ 25.00! Êle achava que não podia aceitar aquilo, porque o que havia no pacote valia vários milhares de dólares!
Vi logo que tinha um caso sem solução boa pela frente, mas assim mesmo chamei o escritório de advocacia. Sabendo que se tratava de assunto de um dos diretores da COSIPA, um dos donos do escritório me atendeu pessoalmente, embora por telefone e, ao ouvir o relato do que se tinha passado, disse que sentia muito mas era aquilo mesmo: a responsabilidade do hotel se restringia ao que estava escrito no boleto, que eu tinha em minhas mãos, e era US$ 25.00.
Antes de desligar, traduzi a informação para o meu diretor, e êle, vermelho de raiva, mandou agradecer e encerrar o assunto.
O que tinha acontecido, evidentemente, foi que êle "deu bandeira", como se costuma dizer: todos deixavam suas bagagens nos "check-rooms" e iam buscá-las mais tarde, e os empregados presumiam sempre que continham apenas as roupas e artigos pessoais de cada um, de nenhum valor para terceiros. Mas indo verificar, êle passou a mensagem de que o pacote conteria alguma coisa de valor, como de fato continha, e assim foi prontamente roubado. Os empregados do tal "check-room" seguramente se cotizaram para pagar ao hotel a indenização devida ao hóspede, e também para dividir o dinheiro da venda do conteúdo do pacote. E ficou por isso mesmo.
No dia seguinte o meu diretor apareceu novamente no escritório, desta vez sorridente, e disse que tinha comprado tudo de novo ali mesmo em New York. Foi uma boa mancada, sem dúvida.
Mas viajando anos antes pela Alemanha e Áustria, de automóvel, minha mulher e eu vímo-nos num apêrto certa vez, porque quando anoiteceu decidimos entrar numa cidadezinha para pernoitar em algum hotel. Aconteceu que a tal cidadezinha ficava à beira de um famoso lago, e havia uma regata muito tradicional em andamento. Os participantes da tal regata, e seus apreciadores, tinham lotado todos os hotéis da cidade.
Tivemos que nos colocar de novo na estrada, à procura de algum lugar ainda mais insignificante, para conseguirmos um quarto de hotel. Estava bastante escuro e estávamos numa estrada regional pequena e pouco movimentada. De repente, vimos uma placa apontando para a direita na qual se lia: "Umleitung".
Minha mulher foi logo sugerindo que tentássemos chegar ao lugar indicado na placa, e lá fomos, mas mais adiante vimos que estávamos de novo na mesma estrada da qual tínhamos saído e sem termos encontrado lugar algum. Parei o carro e saquei o dicionário de bolso, no qual averiguei que "Umleitung" quer dizer "desvio" em alemão.
Entramos finalmente numa cidadezinha, e resolvi agir com mais prudência: parei num posto de gasolina para pedir informação. O atendente estava enchendo o tanque de um outro carro, e fui até êle para perguntar por algum hotel, em meu alemão de pé quebrado.
Muito prestativo, o sujeito disparou um monte de informações, mas eu não conseguia entender nada, porque falava muito depressa. Perplexo, e vendo a minha cara de paisagem, êle parou e perguntou: "Você não fala alemão?"
Fiz que não, e êle não se deu por vencido: "Então vou dar as informações à sua mulher!", e se dirigiu rapidamente ao nosso carro, onde voltou a disparar as suas informações para, logo em seguida, voltar a olhar para mim extremamente desapontado, porque êle tinha pensado que minha mulher, que é loira, falaria alemão.
A muito custo acabei entendendo algumas de suas explicações, agradeci e acabei encontrando um hotel, onde pernoitamos.
Prosseguindo viagem, e depois de muitas peripécias e mancadas do gênero, chegamos finalmente à cidade de destino, onde iríamos permanecer por alguns meses. Uma cidade de interior, mas bastante movimentada. Eram umas três horas da tarde, e vi um policial no centro de uma praça, ao qual me dirigi para pedir informações. Já então o meu alemão tinha melhorado bastante, e não tive dificuldade em perguntar, mesmo porque então sabia a qual hotel teria que me dirigir. Muito solícito, o policial deu instruções detalhadas, de acôrdo com o costume local, que eram mais ou menos assim: "Vá por aquela rua ali em frente até o primeiro farol e vire à direita. Na primeira esquina vire à esquerda e siga até encontrar uma casa amarela. Então vire à direita e siga em frente por três quilômetros: o hotel estará à sua direita."
Seguindo as instruções, tudo foi bem até o primeiro farol, onde virei à direita, mas na primeira esquina tive que virar à direita, porque à esquerda e em frente era contra-mão. Perdi-me completamente, e a muito custo consegui voltar ao ponto de partida, onde o tal policial continuava no mesmo lugar.
Quando me viu, - era fácil me identificar porque o carro que diriga era francês e tinha placa francesa, - êle abriu os braços exclamando alto alguma coisa que imagino ter sido: "Quê sujeito burro!" Se não foi isso, pelo menos pensou, mas àquela altura eu não estava para ficar tendo orgulhos inúteis, e fui logo dizendo que achava que tinha cometido algum engano ou não tinha entendido a explicação.
Êle começou a repetir toda a explicação que havia dado, - não detectei nada de diferente, - mas antes que terminasse apareceu um carro da polícia com dois policiais dentro. Êle se interrompeu e disse: "Augenblick!", que se traduz literalmente como "piscar de olhos", mas que se usa para dizer "um momento", dirigindo-se em seguida aos seus colegas policiais, aos quais contou o quê estava acontecendo.
Os três riram à bessa, mas em seguida o meu amigo policial se voltou para mim e disse: "Vá atrás deles!"
Agradeci, entrei no carro e fui seguindo o carro da polícia. Depois de alguns quarteirões o movimento diminuiu bastante e os transeuntes paravam para olhar aquele comboio esquisito de dois carros, um da polícia e outro francês, até que o carro da polícia adentrou um enorme portão. Fiquei meio na dúvida, mas entrei também.
Num instante apareceu uma porção de gente, muitos com aventais ou guarda-pós brancos, para nos recepcionar, porque estávamos no estacionamento do hotel: tínhamos entrado pelos fundos.
Os policiais se despediram e se retiraram, depois de eu desajeitadamente agradecer a ajuda. E naquele dia todos comentavam no hotel que minha mulher e eu éramos os hóspedes que tinham chegado escoltados pela polícia…
Naquele carro com chapa francesa ainda viajamos um bocado: quando terminei meus afazeres na Áustria, fomos à Itália, e de lá atravessamos a Alemanha de novo e fomos à Bélgica, ao Luxemburgo e à Holanda, para depois darmos com os contados na Inglaterra e finalmente de volta à França.
Na Itália aconteceram poucas e boas em matéria de mancadas, mas me lembro de uma que foi notável: estávamos visitando Verona e queríamos ver a tal casa com a sacada descrita por Shakespeare em "Romeu e Julieta". As ruas eram estreitas e não encontrávamos um lugar para estacionar. A rua onde ficava a tal casa era fechada ao tráfego de veículos de modo que tínhamos que estacionar de qualquer maneira.
Encontrei uma pequena praça com um estacionamento no centro, que estava completamente cheio. Enjoado de tanto rodar, e vendo uma calçada larga ao lado de uma casa, decidi subir nela e estacionar ali.
E assim fomos ver a casa da Julieta. Quando voltamos, havia um policial com uma farda totalmente branca e reluzente parado em frente ao nosso carro com as mãos na cintura a la Mussolini. E atrás do nosso carro havia um outro carro também estacionado em cima da calçada. Quando me aproximei do carro, o tal policial começou a esbravejar, - talvez porque não tivesse como me multar, - e resolvi "não entender" italiano. Eu só dizia e repetia, em francês: "Je ne comprend pas, monsieur!"
Cada vez que eu dizia aquela frase, ao mesmo tempo que ia entrando no carro com minha mulher, o policial ficava mais possesso e vermelho, parecia que ia explodir. Ainda me lembro dos gritos dele, protestando contra a nossa falta de disciplina: "Due francese!", e dizia alguma coisa no sentido de que estávamos bagunçando a cidade, desrespeitando a lei, etc. Só então notei que o outro carro em cima da calçada também tinha placa francesa, e seu dono seguramente seria também alvo de bronca semelhante.
Mas houve mancadas ainda mais memoráveis. Quando estudante, - não sei porquê hoje estou me lembrando das coisas em órdem cronológica inversa, - fui com minha turma da faculdade de engenharia visitar indústrias de interêsse de nossa especialidade em alguns países europeus, entre êles a Suécia, onde conhecemos o inverno mais rigoroso que tínhamos enfrentado até então. A viagem tinha sido organizada de forma que nos hospedávamos em dormitórios de universidades e hotéis baratos, e fazíamos refeições, sempre que possível, nas cantinas dessas universidades e casas de estudantes, de modo que estávamos sempre tendo contacto com estudantes dos lugares visitados.
Uma noite chegamos a uma dessas repúblicas de estudantes depois de um dia gelado, extremamente cansados de tanto andar e esfomeados tanto quanto se pode imaginar. Fomos tomar um banho quente às carreiras, porque já era tarde e tínhamos medo que a cantina fechasse. Chegando à cantina, nem perguntamos nada a ninguém, fomos logo pegando um prato fundo e nos servindo de uma sopa branca fumegante e convidativa, e depois um prato raso onde nos serviram uma carne mal passada com uma espécie de molho vermelho e gelatinoso.
Experimentei o tal molho: era adocicado. Resolvi atacar a sopa, e meus colegas fizeram a mesma coisa.
Quando estávamos terminando, e já mais dispostos a conversar depois de termos matado a fome em boa parte, começamos a conversar com estudantes suecos que tinham se aproximado e sentado na mesma mesa, uma longa mesa com longos bancos nos dois lados.
Lá para as tantas, e depois que estávamos bem descontraídos, o estudante sueco com o qual eu conversava perguntou se podia fazer uma pergunta de caráter pessoal. Fiquei intrigado, mas disse que sim, e êle me perguntou porquê tínhamos comido a sobremesa primeiro!
Eu e meus colegas nos entreolhamos e explodimos numa enorme gargalhada: "Eu bem que percebi que aquela sopa era muito doce!"
Vou parando por aqui, porque se ficar contando as minhas mancadas que me estão vindo à memória não terminarei tão cedo.