Observador Isento (Unbiased Observer)

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Wednesday, October 08, 2008

Adiamentos fatais

Luiz A. Góes

O tempo tem, muito mais frequentemente do que se supõe, sido usado como remédio para problemas difíceis. Quando não se dispõe de uma solução considerada boa, ou não se sabe onde buscá-la, o que se faz é adiá-la, esperar que as coisas melhorem, ou que surja, como que por encanto, alguma luz no fim do túnel.
Isso ocorre a nível pessoal, porque cada um de nós recorre constantemente a adiamentos para se livrar de problemas. A nível empresarial, porque as empresas sempre relutam em adotar medidas necessárias que possam parecer indesejáveis ou desvantajosas a seus donos ou administradores. E sobretudo a nível público, porque governantes e administradores públicos de um modo geral sempre colocam seus interêsses pessoais e partidários acima dos interêsses públicos, ou dos interêsses gerais do povo e do país.
Poderíamos sair citando exemplos desse fenômeno, mas seria uma coisa infindável e seguramente desnecessária, já que cada um sabe de sua vida e terá fabricado seus próprios exemplos pessoais, que todos os dias nos chegam pelos jornais problemas empresariais criados pelas omissões de seus dirigentes, e sobretudo aquelas questões não resolvidas da administração pública, que sempre acabam nos afetando muito mais do que podemos prever.
De fato, alguns episódios relacionados com procrastinações (que palavra, não?), os adiamentos de que falamos, na área pública, são notáveis e dignos de menção. Um deles, para não irmos muito longe no passado, foi o que levou Tancredo Neves à morte. Êle estava doente havia tempo antes da eleição, visivelmente sofrendo dores e se comportando em público de maneira anômala (de que a mão comprimindo a barriga na missa de ação de graças logo depois de eleito foi testemunho eloquente), e seguramente seus médicos lhe diziam que precisava de tratamento urgente, mas tentou "empurrar com a barriga" até a posse. A doença o venceu na véspera, e o levou um mês depois. Já pensaram como a história do Brasil teria sido diferente se êle tivesse se tratado em tempo?
Neste exato momento estamos vivendo uma situação complicada nas finanças internacionais, e por tabela nas nacionais, devido a procrastinações desastradas. A crise imobiliária nos Estados Unidos vem se desenrolando há uns dois anos, com muita gente boa alertando para os problemas que poderia causar, aparentemente sem que se tenham feito ouvir pelas autoridades. Retrocedendo mais um pouco, vemos que os Estados Unidos entraram em duas guerras quase ao mesmo tempo depois do atentado às torres gêmeas, numa época em que a economia mundial ainda estava em fase alta, sem levar em conta que essas coisas são cíclicas, e que em economia uma fase exuberante é sempre seguida de uma fase de encolhimento: depois do tempo de vacas gordas sempre vem o tempo de vacas magras.
Assim, tendo iniciado seu primeiro mandato em posição confortável, com superávit fiscal recordista deixado pelo antecessor, o atual govêrno em muito pouco tempo produziu um déficit também sem precedentes. Um das tais guerras é de natureza discutível, ou seja, pode-se debater se seria uma guerra de necessidade ou de escolha, mas a outra é nitidamente uma guerra de escolha, e se precisava ser travada algum dia, a ocasião foi errada. De qualquer maneira elas têm uma coisa muito importante em comum: são verdadeiros sugadouros de recursos.
Tentando explicar melhor: a guerra do Afganistão foi motivada diretamente, pelo menos oficialmente, como desforra, ou seja, a necessidade de capturar o mentor do atentado, e também pela necessidade de mostrar ao mundo que aquele tipo de agressão não ficaria impune. No curto prazo o motivo principal foi o primeiro, e embora se possa discutir méritos e oportunidades, o momento de iniciar o conflito podia eventualmente ter sido retardado em certa medida, muito embora se possa admitir que essa é o que se pode chamar, até certo ponto, de uma guerra de necessidade.
Já a guerra do Iraque é nitidamente uma guerra de escolha, ou seja, no frigir dos ovos se trata de uma guerra resultante mais da decisão de levá-la a efeito do que da real necessidade de fazê-lo, mesmo porque os motivos alegados ficaram claramente insustentáveis, independentemente de existirem ou não motivos que poderiam justificá-la a prazo mais longo.
Mas o ponto mais importante a ressaltar é que o mesmo govêrno que não hesitou em tomar as medidas necessárias a fim de deflagrar as duas guerras não teve atitude semelhante perante o problema apresentado pela crise imobiliária, apesar de ela ter surgido já numa época em que as condições da economia mundial caminhavam para se tornar muito menos favoráveis do que aquelas existentes no início do primeiro mandato.
A meu ver os interêsses político-eleitorais se sobrepuseram aos problemas e levaram a um adiamento de ações e decisões que agora se revela talvez fatal. De fato, apesar de as condições da economia darem sinais de que seria prudente adotar cautela, os agentes financeiros continuaram a ser estimulados a facilitar nos contrôles e a convencer o homem da rua a investir em imóveis além de suas possibilidades, transmitindo assim a impressão de uma prosperidade que em realidade não mais existia, era totalmente ilusória. As autoridades competentes ou fizeram vista grossa ou foram incompetentes por não tomarem as medidas adequadas de modo a impedir a desastrosa onda que continuava a crescer no mercado imobiliário. De meu ponto de vista, foi mais a primeira dessas alternativas que prevaleceu, muito embora não se possa descartar a falta de competência.
Por quê teria isso acontecido? Caminhando para o seu final, e com a necessidade de manter condições favoráveis para vencer as eleições e manter o partido no poder, o govêrno parece ter apostado contra o tempo, esperando que nada acontecesse, que a bolha financeira não estourasse antes das eleições, e de preferência antes do final do mandato. A realidade prática, entretanto, tinha outros planos, e os bancos simplesmente começaram a quebrar. A quebradeira começou nos bancos de investimento e ameaça contaminar os bancos comerciais, o que criou uma aversão ao risco de envergadura a ponto de começar a faltar dinheiro no mercado para financiar quase tudo, ao mesmo tempo que o público começa a pensar em correr aos bancos para sacar seus haveres.
É claro que, se isso acontecer, a economia americana vai para o buraco como em qualquer outro lugar do mundo. Estancar o processo, portanto, tornou-se um imperativo incontornável. Mas tudo isso está levando a um resultado exatamente inverso àquele que se tinha em mira quando as medidas disciplinadoras deixaram de ser tomadas e, ao contrário, estimulou-se o abuso: a explosão da bolha quase às vésperas da eleição está praticamente jogando a vitória no colo do partido oponente, cujo candidato sái completamente fora dos padrões americanos, por ser negro e por não ter experiência administrativa suficiente.
A crise americana está, como era de se esperar, contaminando todos os mercados do mundo, e alguns govêrnos europeus e asiáticos começaram a tomar medidas preventivas bem antes de os próprios americanos se assustarem com a primeira falência bancária, há uns dois meses. Mas a maioria esmagadora ainda deseja e espera que essa contaminação não aconteça, e mesmo havendo sinais mais do que suficientes para se concluir que a contaminação é inevitável, se já não em pleno andamento, muitos governantes continuam a negar a própria existência da crise.
No caso do Brasil, repetidas declarações de que a economia brasileira estaria blindada e coisas do gênero predominaram por bom tempo, apesar da experiência no assunto que se espera que o presidente do Banco Central possua. E o ambiente está contaminado também, internamente, pela falsa impressão de prosperidade criada pelo empenho do govêrno em ampliar o crédito e oferecê-lo a parcelas da população que dificilmente teriam condições para dele participar. Esses programas de crédito dirigido a pessoas que a rigor não têm crédito foram implantados objetivando criar a mesma impressão de prosperidade que se tentou manter nos Estados Unidos, adicionalmente à ampliação da bolsa-família e a certos malabarismos estatísticos mediante os quais se passou a considerar de classe média quem tem renda igual a cêrca de três salários mínimos mensais, verdadeiro absurdo.
Tudo isso está sendo feito com objetivos exclusivamente eleitorais, e é bastante óbvio que o govêrno esperava e desejava que nada acontecesse antes das eleições municipais, cujos resultados terão forte impacto sôbre as eleições nacionais daqui a dois anos. Quer dizer: o objetivo também é idêntico ao que levou o govêrno americano a negligenciar diante da crise, - manter o poder em mãos do partido, impedindo que o oponente dele se apodere. E também no Brasil as coisas começaram a acontecer antes do tempo desejado, ou seja, a bolsa de valores despenca espetacularmente, grandes somas começaram a deixar o país há várias semanas para cobrir rombos existentes nos países de origem desses capitais, a agricultura, - que tem sido o carro chefe das exportações, - reclama da virtual inexistência de recursos para financiar a próxima safra, e por aí afora. Parece aquela estória da casa que estava caindo mas os moradores ficavam discutindo de que côr deveriam pintar as paredes.
Economia não é ciência exata, e sim ciência social, e como tal não pode se pode dissociar os acontecimentos econômico-financeiros dos fenômenos sócio-políticos. Mais particularmente dos acontecimentos políticos, que sempre têm grande influência sôbre todos os acontecimentos econômicos. E mais ainda quando a irresponsabilidade e os interêsses eleitorais se sobrepõem aos interêsses do país e de seu povo.
É frequente ouvirmos pessoas dizerem que não gostam ou não se interessam por política. Já foi dito muitas vezes que as pessoas que não gostam de política, ou que não prestam atenção a ela por qualquer outro motivo, são sempre condenadas a serem governadas (ou desgovernadas) pelos que gostam, ou pelos que, mesmo não gostando, dela se aproveitam para atingir seus objetivos. Muito do que acontece e nos afeta é decorrente do que se passa na arena política, de modo que temos que nos interessar por política até mesmo por uma questão de auto-defesa, particularmente neste momento.
Estamos assistindo a um processo que sabemos como começou, mas dificilmente podemos dizer agora como irá terminar. A generalizada irresponsabilidade exibida pelos poderes executivo, legislativo e judiciário nos últimos tempos deixa-nos perdidos num vazio sem norte, no qual não temos como enxergar alguma tábua de salvação para agarrar-nos. Apenas de uma coisa sabemos com certeza: certos adiamentos são fatais.