Observador Isento (Unbiased Observer)

A space for rational, civilized, non-dogmatic discussion of all important subjects of the moment. - Um espaço para discussão racional, civilizada, não dogmática de todos os assuntos importantes do momento.

Monday, October 30, 2006

Paralelismo histórico

Luiz A. Góes
Nas últimas semanas da campanha eleitoral vimos o Lula instigando os ânimos dos nortistas e nordestinos contra os sulistas, quando dizia que a "elite burguesa" da Avenida Paulista "odeia o nordeste", ou "odeia o norte", dependendo de onde estava em cada momento. A imprensa comentou bastante o assunto, inclusive publicando mapas muito ilustrativos da "divisão" que estava se estabelecendo no país, ao mesmo tempo que fazia ilações de outro tipo, qual seja a divisão do país entre os abastados e os miseráveis, os instruídos e os ignorantes, e por aí vai.
Não pude deixar de pensar no mal que esse tipo de coisa provoca a longo prazo, inclusive porque sentimentos separatistas já existiram e são facilmente despertáveis, mas justamente por parte dos estados do sul que, se resolverem juntar-se e consumar essa separação, seguramente não encontrarão resistência por parte do resto, mesmo porque detêm a maiór parte da população e dos recursos.
Comecei a me lembrar, nessa análise, da história da Guerra de Secessão americana, que teve alguns aspectos semelhantes aos agora como que inventados pelo Lula, nesse "anti-paulistismo" que inventou para tirar votos de seu oponente.
Nas escolas aprende-se que a Guerra de Secessão foi causada pela escravatura nos Estados Unidos, mas isso é um enorme engano, uma forma romântica de justificar uma guerra que ceifou milhares e milhares de vidas. Em realidade, a guerra começou quando os chamados "estados do sul" declararam que queriam separar-se da chamada União (secessão quer dizer separação).
O direito de secessão estava no conjunto de direitos originais dos Estados Unidos, porque cada Estado (ou Colônia, como eram originalmente chamados) tinha o direito de livremente aderir à União ou de dela se separar.
Lincoln, que era proveniente de um estado do norte, o Illinois, tinha sido eleito presidente e viu imediatamente que aquilo reduziria o país a, na melhor das hipóteses, dois países pequenos e inexpressivos, mas os habitantes dos estados do sul queriam preservar a boa vida que levavam.
O sul dos Estados Unidos naquela época era mais rico do que o norte: tinha melhor clima, e a economia baseada na agricultura com uso de mão-de-obra escrava ia de vento em popa.
O norte, com clima bem menos favorável, vinha se industrializando, dando preferência a atividades que dependessem menos do clima, e com isso ia deixando de se interessar pela mão-de-obra escrava, que era não qualificada ou muito pouco qualificada, e preferindo importar imigrantes europeus, com suas habilidades e tradições para desenvolver os empreendimentos industriais.
Os sulistas, vendo Lincoln ser eleito e o norte se enchendo de imigrantes, cujos filhos seriam cidadãos americanos em no máximo uma geração, por isso mesmo com direito a voto, ficaram preocupados com a possibilidade de virem a ser governados permanentemente pelo norte, onde estaria sempre a maioria dos eleitores, já que no sul a maioria da população era escrava e jamais votaria. Assim, sendo mais ricos e desejando não correr o risco de serem governados pelo norte, declararam-se separados da União.
Em alguns estados do norte a escravidão nem mais existia, mas prevalecia a regra de devolução sistemática de escravos fugidos para seus estados de origem sempre que apanhados em outros estados. E essa regra continuou valendo até mais de metade da Guerra de Secessão, quando o sul estava com a guerra praticamente ganha e em vias de ser reconhecido como um novo país pelas principais potências da época.
Foi então que Lincoln teve a idéia de atacar o sul pelo lado econômico, tirando-lhe todos os meios de produção que fosse possível para enfraquecê-lo com a maiór rapidez possível. Entre as medidas adotadas surgiu a política de destruir tudo o que fosse encontrado em regiões sulistas sempre que o exército do norte estivesse nelas, como as lavouras, os instrumentos e maquinário agrícola, além de um bloqueio naval (o norte começou a produzir muitos navios de guerra e até inventou o submarino nessa época), tirando do sul a capacidade de vender livremente seus produtos na Europa, etc, e logo surgiu a idéia de minar o instrumento sulista mais precioso: a mão-de-obra. Assim foi que Lincoln expediu a tal Declaração, a qual extinguiu a obrigatoriedade de devolver escravos fugidos e na prática veio a tornar desejo unânime dos nortistas acabar com a escravidão no sul para acabar com a guerra mais rapidamente. A inexistência de represália contra fugas nos estados dominados pelo norte provocou uma enxurrada de fugas de escravos do sul que realmente começou a atrapalhar profundamente a economia sulista e acabou dando ao norte a vitória.
Quer dizer: a abolição da escravatura foi instrumento para a vitória do norte sôbre o sul, mas não foi a causa da Guerra de Secessão. E se vê que enquanto os estados do sul dos Estados Unidos não queriam ser governados pelos nortistas e chegaram a tentar separar-se por causa disso, no Brasil cultivou-se na última campanha uma aversão do norte e nordeste pelo sul, a meu ver divisionista e podendo prejudicar o futuro do país.
O movimento político encabeçado por Lincoln foi exatamente o contrário daquele adotado por Lula na campanha, porque buscou de todos os modos, com unhas e dentes, preservar a integridade do país, quebrando a espinha dorsal daquela "elite" sulista que queria dividí-lo. (Ou será que o Lula esteria pensando em fazer a mesma coisa com a "elite burguesa" dos estados do sul?…)
Não é inoportuno lembrar que alguns membros daquela elite sulista americana vieram, depois da guerra, e emigrar para o Brasil, onde fundaram, entre outras coisas, a cidade de Americana, no Estado de São Paulo, - único lugar do mundo onde ainda podem usar a bandeira confederada americana, muito embora sua aventura brasileira tenha sido de pouca duração porque também no Brasil a escravatura, base da agricultura que praticavam, veio a ser abolida poucas décadas mais tarde.

Sunday, October 29, 2006

Técnicas Secretas

Luiz A. Góes
Há uns dois anos apareceu por aqui o Amâncio, nosso primo, que me proporcionou dois dias de agradáveis conversas. Eu nunca havia tido a oportunidade de conversar com êle mais longamente: quando me casei, êle ainda era menino, e todas as vêzes que conversei com êle depois disso, havia sido por causa de algum problema de saúde com alguém da família, porque o Amâncio é médico.
Nessa visita, embora curta, conversamos a respeito de um milhão de coisas, mas a parte mais emocionante para mim foi que tivemos a oportunidade de trocar reminiscências muito antigas, eu me lembrando dos avós do Amâncio, particularmente do tio Chico, pessoa que conheci pouco, -mas o pouco que conheci me encantou muito, - e o Amâncio me contando um bocado de coisas lá de Araraquara. Mencionei que uma vêz, minha filha mais velha ainda bebê, paramos lá na casa deles numa das nossas idas para Rio Preto, quando tivemos uma recepção agradabilíssima por parte daquele simpático casal de tios de minha mulher. O tio Chico era músico, e eu sempre tive muita admiração por pessoas capazes de tocar algum instrumento, cantar, alegrar a vida da gente. Êle tinha um conjunto de jazz, e o Amâncio me brindou com deliciosas histórias em torno daquele lado da personalidade do tio Chico. Como músico, deve ter sido muito duro para êle ter perdido grande parte da audição em seus últimos anos, embora nunca tivesse perdido a simpatia e a afabilidade, sempre com um sorriso nos lábios.
O Amâncio perguntou então se em nossa visita havíamos comido "gravatinhas". Não entendi a quê êle se referia, e me explicou que eram uns pãezinhos em forma de gravatinha que o avô costumava comprar na Padaria do Perez, lá perto da casa deles. Acho que me lembro de ter comido um pão gostoso lá, mas como faziam muitos anos, não me lembrei do formato.
O Amâncio explicou então que as tais "gravatinhas" sempre foram um sucesso, seja porque eram muito gostosas, seja por causa do formato caprichoso. Sempre que vinha alguma visita, a tia mandava o tio Chico logo buscar as "gravatinhas".
Passando férias com os avós, quando menino, o Amâncio notou o sucesso das "gravatinhas", mas notou também que o avô não as comia. Um dia resolveu perguntar: "Porquê o senhor não come, vô?", e o avô limitou-se a sorrir sem nada dizer, - êle falava muito pouco mesmo, mas a pergunta foi repetida muitas vêzes, e sempre o mesmo sorriso sem resposta.
Um dia chegaram umas visitas e lá foi o tio Chico comprar as "gravatinhas". O Amâncio resolveu ir atráz, por curiosidade. Chegando à Padaria do Perez, ficaram sabendo que ia sair uma fornada dali a alguns minutos: só havia umas poucas "gravatinhas" da fornada anterior, já frias. O avô resolveu levar aquelas mesmo, dizendo que logo voltaria para buscar mais. O Amâncio então pediu ao avô que o deixasse ficar lá esperando.
E assim, esgueirou-se para a parte de tráz da padaria, porque queria ver como eram feitas as tais "gravatinhas", todas tão iguaizinhas com aquele formato caprichoso que devia dar muito trabalho. Mas viu que o padeiro espanhol estava enfornando uma batelada depois da outra, aparentemente sem muita dificuldade, tirando mancheias de massa de um enorme tacho e produzindo as "gravatinhas" em rápidos movimentos.
Apezar do calorão das proximidades do forno a lenha, foi chegando mais perto para ver como era aquilo: o espanhol estava com uma dessas camisetas sem mangas, suando em bicas na boca do forno, e fazia umas manobras rápidas que consistiam em colocar o naco de massa entre o braço e o tórax bem junto da axila para, num rápido movimento, transformá-lo numa pequena bolacha, que em seguida dobrava hàbilmente dando o formato à "gravatinha".
Chegando em casa, comentou com o avô: "Já sei porquê o senhor não come, vô!"
O avô limitou-se a sorrir sem nada dizer.
Quando a COSIPA me transferiu de novo para São Paulo, depois de nove anos trabalhando na usina em Cubatão, tive a oportunidade de desfrutar da companhia de algumas pessoas sensacionais que lá trabalhavam, que acrescentei ao grupo já numeroso de pessoas sensacionais que conhecia na usina.
Uma dessas pessoas era o Martinho Prado Uchôa, então vice-presidente da empresa. Estava com oitenta anos de idade, mas mantinha uma disposição extraordinária e tinha uma lucidez mental espantosa. Êle havia sido um dos três idealizadores da COSIPA, mas foi alijado da empresa pouco depois de a mesma ter sido fundada, para voltar muitos anos mais tarde como vice-presidente. Tinha paixão pela COSIPA (e eu também! como sofríamos!).
O Martinho era pessoa muito simples, apezar de pertencer a uma família paulista tradicional da região de Ribeirão Preto. As terras de sua família eram tão extensas no tempo de seus pais e avós que dentro dos seus antigos limites haviam surgido várias cidades, algumas das quais eu conhecia. (Assim fiquei sabendo que Uchôa e Santa Adélia deviam seus nomes aos avós do Martinho.)
Apezar de provir de uma família de fazendeiros, seu pai tinha sido engenheiro, e o Martinho havia seguido caminho semelhante, tendo se doutorado em metalurgia na Alemanha um pouco antes da Segunda Grande Guerra. Muitas coisas interessantíssimas me contou o Martinho.
Frequentemente almoçávamos juntos numa lanchonete que havia junto ao escritório, e num desses almoços o Martinho começou a falar de seu pai, que era engenheiro ferroviário e tinha passado a maior parte de sua vida construindo ferrovias.
Naquele tempo a maneira de construir ferrovias era mais ou menos assim: ia-se com um bando de mateiros abrindo picadas floresta a dentro, em busca do caminho que oferecesse condições para a construção, evitando subidas e descidas muito íngremes e tentando ficar nas encostas suaves para não ter que construir muitas pontes nem fazer muito movimento de terra. Uma vêz selecionado o caminho de certo trecho, e feito o respectivo levantamento topográfico, "engenheirava-se" o referido trecho e começava-se a construir a via férrea, - a "linha", - instalando-se um acampamento lá na outra ponta. Para esse acampamento transferia-se todo o pessoal da engenharia, e recomeçava-se o processo de abrir picada, etc. Quando a "linha" chegava lá, já estava na hora de mudar o acampamento para a outra ponta do trecho seguinte.
O pai do Martinho vivia nesses acampamentos, e o Martinho adorava, quando menino, passar as férias com o pai, vendo o pessoal trabalhar, caçando passarinhos e pequenos animais com bodoque ou pescando em algum riacho que aparecia pelas redondezas. Os acampamentos eram muito animados porque sempre havia, além do pessoal em serviço, - gente interessante, segundo o Martinho, - muitas visitas de pessoal do govêrno, e o pai do Martinho fazia questão de hospedá-los condignamente.
Uma das coisas que não dispensava era uma boa mesa. Para isso dispunha de um cozinheiro chinês que fazia uma comida deliciosa. Não havia ninguém que não gostasse, e os visitantes ficavam sempre maravilhados, saíam encantados com a acolhida de um modo geral e com a comida em particular.
Aquilo começou a chamar a atenção do Martinho porque, disse êle, a comida não variava muito de refeição para refeição, mas parecia sempre uma novidade. Muitas vêzes êle ouvia as pessoas dizerem, depois de comerem um pouco de salada logo ao se sentarem, que não havia nada como uma boa mesa daquelas para dar vontade de trabalhar duro.
Muitos visitantes também se referiam à salada, particularmente ao tempêro delicioso e ao fato de que não se distinguia o sal, nem o vinagre, nem o azeite, era uma mistura perfeita.
Sempre curioso e buscando novidades, o Martinho postou-se junto à cozinha um belo dia, para ver como era feita a tal salada. O chinês foi mostrando, pacientemente, como cortava as verduras, os tomates, os palmitos, as cenouras, os rabanetes, as cebolas e tudo o mais. Lá para as tantas o Martinho perguntou pelo tempêro, e o chinês apanhou um copo bem grande, colocou nele um bocado de sal e acrescentou azeite e vinagre até quase encher, deixando o copo sôbre a mesa.
"Não vai temperar a salada?", perguntou o Martinho. "Só na hora de servir", respondeu o chinês.
O jeito era voltar mais tarde.
Quando ouviu o barulho de alguém batendo numa lata, que era o sinal de chamada para o rancho, abalou-se o Martinho de volta para a cozinha, porque queria a todo custo ver temperar a salada.
Lá chegando, viu o chinês que mexia a mistura de sal, azeite e vinagre no copo com uma colher, tomava um gole bem grande da dita cuja e bochechava enèrgicamente para depois borrifar com a boca sôbre a salada, que ao mesmo tempo revirava também enèrgicamente com as mãos. Terminado o conteúdo de um gole, tomava outro e repetia a operação, até usar todo o copo de tempêro.
Não era de admirar que a salada fizesse tanto sucesso: havia um ingrediente secreto, e uma técnica de preparação ainda mais secreta.
Foi um perereco quando contou ao pai, disse o Martinho.
Quando menino, costumava passar as férias escolares em casa de meus avós em Santa Catarina. Passava o ano pensando nas férias, só para ir para lá e poder desfrutar do calor humano da família numerosa, das comidas gostosas que só minha avó sabia fazer, do colorido daquele pequeno mundo de imigrantes italianos, alemães, poloneses, libaneses e o que mais fosse, além de descendentes de portugueses que apareciam de vêz em quando.
Era um verdadeiro mundo de sotaques variados, de se ouvir gente conversando em línguas que não entendíamos, de ver meus avós trocando palavras em italiano entre si, ou conversando em italiano com algum visitante, o pessoal indo e vindo a cavalo ou em carroças, carroções, charretes, havia cavalos e carroças no fundo do quintal da casa de meu avô, além de um caminhão e de um velho fordeco de um de meus tios.
Era uma vida intensa, sempre surgindo alguma novidade todos os dias ou, se não surgia nenhuma, meus tios inventavam alguma coisa. Um dia íamos pescar, no outro íamos fazer um piquenique, no outro íamos até alguma "colônia", que é como os sítios e fazendas por lá eram chamados, ou então havia a "sessão pão-duro" no cineminha poeira, cuja entrada era só um cruzeiro e passava três filmes, ou o "footing" na praça, - a que eu era menino e ia só assistir, - ou alguma festinha no clube, ou até mesmo um joguinho de baralho bastante divertido, com tanta gente querendo jogar para fazer brincadeiras e palhaçadas.
Um de meus tios tinha (e ainda tem) a minha idade, e éramos companheiros inseparáveis. Depois que crescemos um pouquinho fomos ficando corajosos, começamos a ir pescar no rio Iguaçu sem esperar pela companhia de um dos mais velhos, às vêzes alugávamos um bote e remávamos um pouco rio abaixo ou rio acima.
As nossas pescarias eram geralmente fraquinhas, porque não conhecíamos muito bem a técnica da coisa e nem tínhamos equipamento que permitisse jogar a linha mais longe: contentávamo-nos com a clássica varinha de bambu, um barbante, - naquele tempo não havia fio de nylon, - uma rolha para servir de flutuador, uma chumbada que tirávamos de umas latas de conserva, e anzóis, os únicos que não eram improvisados. Antes de sair tínhamos que catar minhocas no fundo do quintal, porque eram só minhocas que usávamos como iscas.
Voltávamos das pescarias, no final do dia, queimados de sol e cansados, mas contentes com os poucos peixinhos que conseguíamos apanhar. Minha avó nos prestigiava, sempre fritando prontamente o que trazíamos e colocando na mesa no jantar.
Um dia, não me lembro porquê, meu tio companheiro não estava disponível e resolvi ir pescar sòzinho. Andei pelas barrancas do rio, para cima e para baixo, experimentando vários lugares, mas naquele dia a coisa estava ainda mais frustrante do que de costume: consegui pegar apenas três lambarizinhos ou coisa que o valha. Começando a escurecer, recolhi meus trecos e comecei a caminhar de volta para casa, percorrendo a margem do rio para alcançar o caminho por onde tinha vindo.
Em dado momento vi uma aglomeração à beira d’água e resolvi ir ver o quê era. Para meu espanto, havia uns dez ou mais sujeitos de várias idades pescando com varinhas como eu, mas pegavam um peixe atráz do outro. Empunhei a minha vara mais do que depressa e comecei a colocar uma minhoca no anzól, quando um garoto a meu lado disse para não perder tempo porque não precisava. Para meu espanto, era só jogar o anzól dentro d’água e já havia algum peixe mordendo. Comecei a puxar um atráz do outro, como os demais, alguns pequenos, outros maiorzinhos, a meu ver um verdadeiro milagre, melhor do que qualquer estória de pescador.
Acabei chegando em casa já noite bem escura, mas com uma fieira de peixes enorme para os padrões de nossas pescarias.
Minha avó estava com o jantar feito, mas avisou que ainda ia fritar os peixes, de modo que ficamos esperando. Enquanto isso, meu avô começou a se acomodar na cabeceira da mesa, uma dessas mesas compridas porque a família era numerosa, empunhando o seu copo de vinho tradicional. À sua direita, todos sabiam, sentava-se minha avó, e à sua esquerda geralmente era quem meu avô chamava por alguma razão especial, ou então o mais velho de seus filhos presentes. Havia um senso de hierarquia que era tàcitamente respeitado.
Naquela noite minha avó colocou o prato com os peixes fritos na mesa e meu avô me chamou para sentar à esquerda dele! Foi uma glória! À medida que íamos comendo, meu avô ia fazendo perguntas: "A quê horas você saiu?" "Porquê foi sòzinho?" "Não sabe que é perigoso?" "Nunca mais faça isso!" "Então você finalmente aprendeu a pescar de verdade, hein?" "Onde foi que você pescou?" "Em vários lugares?" "Mas onde foi que você pegou mais peixes?"
Expliquei que havia sido num local onde havia muito peixe e nem era necessário usar as minhocas, um ponto na beira do rio onde havia um tubo grande…
"Porca miséria!", exclamou meu avô olhando para minha avó e dando uma gargalhada. "Êle pegou esses peixes lá na saída do esgoto…" e empurrou o prato. "Esse prato não quero mais nem ver".
Minha avó tratou de ir buscar outros pratos, porque todo mundo começou a jogar fora os peixes. Fiquei numa frustração daquele tamanho, sem compreender porquê êles não queriam mais os peixinhos, todos bem limpinhos, fritinhos e gostosos, que eu tinha pescado e minha avó havia preparado…

Experiências Teatrais

Luiz A. Góes

Dia desses, manuseando velhas fotos, lembrei-me de algumas experiências teatrais pelas quais passei, já lá se vai uma carrada de anos. Se não foram boas, foram pelo menos de certa forma engraçadas.
A primeira delas foi quando eu estava terminando o curso ginasial e tinha crescido naqueles quatro anos como uma abóbora, como dizia minha mãe, - porque ela dizia que as abóboras é que cresciam de repente, - e me tornado, com meus 15 anos incompletos, um varapau praticamente com a estatura que tenho hoje. De repente eu precisava fazer a barba quase todos os dias e já dava até para deixar crescer um bigodinho que tentei cultivar por alguns anos.
Na sala de aulas eu era obrigado a me sentar lá no fundo, porque os lugares mais à frente eram reservados aos mais baixinhos, o que me deixava frequentemente em situação difícil porque ficava em companhia de rapazes mais velhos, muitos deles repetentes contumazes, mais experientes e matreiros, que viviam criando situações a que a minha ingenuidade não estava afeita.
Um belo dia o inspetor de alunos, chefe dos bedéis, que era um sujeito alto e atlético por volta de uns quarenta anos de idade (ou pelo menos eu assim imaginava por comparação com o meu pai) e que trazia os cabelos sempre muito bem penteados com brilhantina e cultivava um bigode preto muito bem cuidado, chegou à porta da sala de aula e apontou para mim e mais uns cinco ocupantes das últimas carteiras da sala de aulas, chamando-nos para o corredor.
"Aí vem bomba," pensei, lembrando-me de outras ocasiões em que inclusive eu tinha sofrido punições devido a estripulias aprontadas pelos meus colegas (eram frequentes as punições coletivas, modo cômodo de nos obrigar a denunciar colegas quando algum mal feito era detectado, e nunca denunciávamos ninguém). Mas para nossa surpresa, o inspetor de alunos perguntou se concordaríamos em participar de uma peça teatral que estava ensaiando, um espetáculo destinado a angariar fundos para a nossa festa de formatura.
Nem me passou pela cabeça a possibilidade de o nosso inspetor de alunos estar em realidade dando um jeito de arranjar uns trocados para si próprio, quando êle explicou que a peça seria apresentada num pequeno teatro do bairro, - que eu nem sabia que existia, - e o público seriam as famílias dos alunos, que pagariam uma entrada para assistí-la. Explicou mais que nós formaríamos um "pelotão" de seis soldados incumbidos de prender um malfeitor ou coisa que o valha, não me lembro bem.
Como tudo o que era novidade sempre agradava, nenhum dos seis recusou, e assim ficamos convocados para um "ensaio" naquele final de tarde, lá mesmo na escola, - o inspetor de alunos morava lá, numa moradia que existia, se não me engano, por cima do prédio, à qual não tínhamos acesso. Eu nunca tinha tido contacto com coisas de teatro, de modo que não entendi muito bem, - melhor dizendo, não entendi quase nada, - porque aquele foi o único ensaio de que participei e saí dele sem saber exatamente o quê iria fazer além de "marchar" um pedacinho, uns quinze passos. Não teria que dizer nada, apenas ficar em posição de sentido quando fosse dado o comando de "alto".
No ensaio o inspetor de alunos falava em dois nomes de atores que guardei, não sei como, que iriam participar da peça mas que não compareciam ao ensaio porque já a conheciam bem e não tinham tempo para ensaios: um deles era um tal de Aramis de la Torre, que vim a saber depois ser um artista de rádio e teatro, e o outro era um jóvem e promissor ator chamado Raul Cortez. O Aramis de la Torre ficou sendo o chamariz para fazer o pessoal comparecer em peso, porque era muito conhecido das novelas de rádio, embora eu não tivesse tido notícia de sua existência até então.
Uns dias depois fomos à Casa do Ator para alugar os uniformes, e no dia seguinte deu-se a apresentação. Ficamos assistindo por trás das cortinas, porque a nossa participação não passava de alguns minutos, e só então fiquei sabendo um pouco do enredo, em que o nosso inspetor de alunos, além de ser o diretor do espetáculo, fazia o papél principal, de um general que ficava disfarçado o tempo todo com seu uniforme coberto por uma capa preta, para só no momento do clímax da história revelar os seus galões atirando a capa preta dramaticamente ao chão e pronunciando uma frase de efeito para dar voz de prisão ao indigitado que estávamos encarregados de prender (em realidade apenas entrávamos em cena e pouco depois o pano caía, porque o espetáculo terminava).
Mais uma vez eu, com meu quase metro e oitenta, acabei ficando atrás naquele pelotão de duas fileiras de três soldados, de modo que vi muito pouco e quase não fui visto por ninguém. Mas quando entramos marchando no palco o público desatou a rir e não parava, apesar da dramaticidade da situação. Fiquei sem compreender até que vi o nosso "general" fazer um movimento que estava fora do script, chegando perto do colega que estava na frente e, dando as costas para o público, dizer-lhe entre dentes ao ouvido, espumando de raiva: "Páre de rir".
Custou um bocado para o público parar de rir e deixar o "general" dar o desfecho programado ao espetáculo, que o riso do meu colega, - que provocou os risos da platéia, - acabou roubando, porque só se falava nele na saída, na volta para casa e nos comentários dos dias seguintes. Minto: nem só dele se falava. O pessoal também comentava ter visto o Aramis de la Torre em carne e osso, porque até então com raras exceções só conheciam a sua voz. (E assim vocês ficam sabendo que eu já estive num palco com o Raul Cortez, de quem naquela época pouco se falava.)
Poucos anos depois tive uma outra experiência teatral, ainda mais insignificante do que a primeira, mas que vou contar assim mesmo: eu pertencia à Congregação Mariana na igreja que frequentávamos, e participava de uma turma de rapazes e moças do bairro que se encontravam todos os finais de semana em pequenas festas ou apenas para bater papo, jogar baralho, alguns cantavam, outros declamavam, a maioria fazia brincadeiras, contava piadas e "aprontava" alguma.
O pai de uma de nossas amigas era um indivíduo extremamente interessante, muito culto, que gostava de conviver com os jóvens. Foi êle quem comprou o primeiro televisor do bairro e nos convidava para assistir a certos espetáculos teatrais apresentados na TV. Lembro-me de que era grande fã do Paulo Autran, e soltava exclamações exaltadas a cada lance em que o dito cujo dava uma demonstração mais evidente de suas habilidades interpretativas.
Todos os anos o vigário da paróquia organizava uma quermesse para angariar fundos para a igreja. Nós participávamos como podíamos, e numa dessas ocasiões o nosso vizinho amante do teatro foi ao vigário para propor que se fizesse a apresentação de uma peça teatral para ajudar na obtenção dos fundos de que a igreja necessitava para algumas reformas. O vigário concordou e colocou o salão paroquial à disposição, mas viu-se logo que serviria apenas para os ensaios, que se realizavam aos domingos depois da última missa, - naquela época não havia missas à tarde, eram todas de manhã. As apresentações foram feitas num pequeno teatro que pertencia, se a memória não me falha, a uma indústria situada no bairro contíguo.
Foi escolhida uma peça relativa a uma estória que se desenrolava no Rio Grande do Sul durante a revolução farroupilha. Pelejei para lembrar-lhe o nome, mas em vão. O nosso "diretor" queria colocar todo o pessoal de nossa turma na peça, mas acabei "sobrando" porque havia muito poucos personagens para tanta gente e logo êle conseguiu preencher todos os papéis. Fiquei colaborando na parte "logística", arranjando objetos para que o colega que seria o contra-regra pudesse produzir certos sons (duas metades de cascas de coco, cuidadosamente limadas para ficarem iguais, por exemplo, serviram para produzir o galope dos cavalos que imaginariamente participavam da estória).
Foram memoráveis as interpretações de uma velha matrona gaúcha por uma das moças do grupo, que arrancou aplausos do público no meio do ato, a ponto de provocar interrupção das falas, e de um baixinho que interpretou um escravo pernóstico capaz de arrancar risos de qualquer um. Numa cena em que aparecia uma moça bonita, a velha matrona disse: "… guapa e bonitaça como eu… (longa pausa, risos prolongados da platéia) … quando tinha a mesma idade…".
O baixinho era um sujeito cômico por natureza: sempre tinha boas piadas e sabia contá-las. Pintou-se de preto e desenvolveu um andar impagável que tornava todas as cenas de que participou muito engraçadas. Rejeitou as roupas da Casa do Ator e improvisou: usou umas calças brancas um tanto meia-canela, umas polainas que desenterrou não sei onde, uma cartola velha que tinha em casa, e usou uma velha casaca que o pai dele tinha usado quando se casou havia bons trinta anos, à qual cobriu as golas com um pano listadinho de branco e vermelho. A cena mais impagável foi quando entrou e disse à matrona: "Sinhá Dona Fulana, preciso falá com vosmicê… … …mais tem que ser particular,… ... longe dos lacaio…" O pequeno teatro quase veio abaixo. Depois do espetáculo, o pai dele comentou que aquela casaca tinha apenas servido para palhaçadas… revelando a origem daquele espírito alegre e cheio de comicidade.
O sucesso dessa primeira peça, que teve que ser apresentada várias vezes porque muita gente começou a pedir para vê-la, animou o grupo, e uma segunda foi logo sendo ensaiada, e desta vez eu iria participar. Lembro-me que me deram uma folha de papél onde estava assinalada uma frase que eu teria que dizer em determinado momento: eu seria uma espécie de investigador que ia colher provas de um suposto crime, ou coisa assim. Lembro-me que a peça se chamava "Arsênico e Alfazema", uma estória em que duas velhinhas bem velhinhas "ajudavam", por piedade, os velhinhos e velhinhas que apareciam casualmente em casa delas a partirem para melhor, dando-lhes uma espécie de licôr de alfazema que faziam, no qual incluiam uma certa quantidade de arsênico.
As tais velhinhas tinham um parente que era um criminoso de verdade, que entrava na peça não me lembro como, e que já tinha matado doze pessoas. Esse parente custou a ser reconhecido pelas velhinhas, porque tinha feito operações plásticas para não ser reconhecido (naquela época era muito esquisito, mas hoje em dia quem faz isso pode se candidatar a ministro, não é mesmo?). Por acaso as velhinhas também tinham "ajudado" a doze velhinhos, de modo que se estabeleceu uma espécie de disputa entre as velhinhas e o parente criminoso. O papél central cabia a um sobrinho das velhinhas, que desvendaria os crimes do tal parente mas nem de longe descobriria as tais de "ajudas" de suas tias.
Eu pelejei para decorar a tal frase, mas não conseguia satisfazer o meu diretor, que nunca parecia contente a cada vez que eu a dizia: pedia para repetir, mudar o modo de dizer, falar mais alto, dar mais ênfase a não sei o quê, virar a cabeça numa certa direção para o público ver melhor, umas dificuldades que eu não conseguia compreender. Ao mesmo tempo, foi experimentando toda a rapaziada, um por um, sem encontrar ninguém que o satisfizesse para o papél principal. Duas das moças do grupo ajeitaram-se num instante nos papéis das velhinhas, o pai de uma terceira concordou em fazer o papél do tal criminoso, e me lembro de tê-lo feito bem, porque foi muito elogiado. E os demais papéis foram sendo preenchidos, mas eu tive que desistir do meu, porque senti que realmente seria um fracasso como ator falante, apesar de minha "experiência muda" anterior. Acabei me incumbindo de algumas das pequenas tarefas para ajudar a organizar o evento.
Praticamente na véspera da estréia, - a peça seria apresentada três vezes, - o nosso diretor apareceu repentinamente feliz da vida: tinha conseguido contactar um rapaz do bairro que não costumava frequentar a igreja porque trabalhava como vendedor viajante e que, segundo êle, era muito bom ator e tinha concordado em tirar uma semana de férias para participar daquele espetáculo. A apresentação realmente acabou sendo um sucesso, e o tal vendedor viajante foi nessa ocasião "descoberto" pelo teatro, porque se tornou ator profissional. Ainda li comentários elogiosos sôbre êle no jornal, mas infelizmente não lhe guardei o nome e acabei por perdê-lo de vista.
Ah! Ia me esquecendo: bem no final da peça, aparecia em cena um cavalheiro bem idoso, - que era o nosso diretor devidamente maquiado, - o qual entrava como comissário de polícia ou coisa assim, e que vinha para levar preso o tal parente criminoso, depois de mil e uma peripécias. Vendo o pobre velhinho, que já andava com certa dificuldade, as piedosas velhinhas ofereceram-lhe um cálice do tal licôr de alfazema. O velhinho, visivelmente cansado, sentou-se numa cadeira e começou a beber, enquanto uma das velhinhas, por trás dele, olhava para a outra e contava nos dedos "Um, dois, …, doze, e treze! Ganhamos!", e descia o pano.
O sucesso dessa peça foi enorme. Tão grande que começaram a chover pedidos para apresentarmos (quer dizer, eu apenas estava "no meio") mais espetáculos teatrais, e passado algum tempo o grupo começou a ensaiar outra peça, que se chamava "As Solteironas dos Chapéus Verdes". Os ensaios passaram então a ser feitos na própria casa de nosso diretor, que morava na casa ao lado da nossa, o que para mim era muito bom porque eu podia assistir a tudo sem grandes problemas.
Um belo dia o vigário apareceu lá na casa do nosso vizinho para conversar. Muito maneiroso, foi introduzindo o assunto de vagar, para em determinado momento sugerir que talvez fosse conveniente escolher uma outra peça, porque alguns paroquianos tinham se queixado do conteúdo da peça anterior, em que muita gente tinha sido "assassinada", e agora algumas beatas tinham expressado preocupação particularmente com uma cena de desrespeito que a peça escolhida continha.
Quando o padre mencionou os "assassinatos" foram dadas boas gargalhadas, mas êle parecia realmente preocupado com a tal cena de desrespeito. O padre e o nosso diretor estavam sentados lado a lado no sofá e o nosso diretor chegou-se para bem perto dele com ar de mistério, dizendo que ia explicar o quê era: em determinado momento na peça uma das solterionas, com seu vestido longo e rodado, começava a falar de um assunto delicado, - e foi representando o papél da solteriona, afinando a voz, - e começou a puxar nervosamente o pano de sua sáia, por baixo da qual havia várias outras sáias, nada de mais. Para fazer que puxava a sáia, o nosso diretor foi puxando a calça, e junto com a calça veio a batina do padre.
De repente o vigário percebeu que sua batina vinha subindo também, mostrando as calças que usava por baixo, e esticou o braço para livrá-la. Nesse momento a "solteirona" deu uma espécie de gemido levando um enorme susto, e largou depressa a sáia e a batina do padre. Só então o vigário percebeu que puxar a batina do padre fazia parte da peça, e desatou a rir, retirando-se em seguida e recomendando que a peça fosse apresentada logo. Foi novamente um enorme sucesso, mas infelizmente o grupo começou a se dissolver, uns casando, outros se mudando, e aquela saudosa experiência teatral, de que eu era em realidade apenas expectador, não mais se repetiu.
Mas o gôsto pelo teatro ficou, e nós que estávamos acostumados ao cinema aos domingos, assistindo filmes importados, principalmente americanos, e vez ou outra alguma chanchada brasileira, mais os espetáculos teatrais eventualmente apresentados na nascente televisão preto-e-branco, começamos a procurar assistir apresentações de teatro de verdade. E assim tivemos a oportunidade de ver Dercy Gonçalves, Zé Vasconcellos, Tonia Carrero, Procópio e Bibi Ferreira, Paulo Autran, Cacilda Becker, os grandes nomes da época, enfim, e depois uma sequência de peças com fundo político ou ideológico, apresentadas pelas novas gerações de atores que começaram a despontar, seguidas de espetáculos inconsequentes, a maioria comédias, conforme a sequência de acontecimentos da evolução política brasileira.
Foi nesse período que vimos, no Rio de Janeiro, na reinauguração do Teatro João Caetano, a peça "O Rei de Ramos", que teve o memorável Paulo Gracindo no papél central. Pena que ficou restrita ao Rio de Janeiro e pelo que sei nunca foi reencenada, porque me pareceu antológica em vários aspectos.
Foi também no Rio de Janeiro que me meteram pela última vez numa enbrulhada de "participação" no espetáculo. Foi assim: fomos ver uma espécie de comédia que tinha por título "A Vida Escrachada de Joana Martini e Baby Stompanato", sátira da história da Lana Turner e suas estrepulias com o amante mafioso, - ou pelo menos eu pensei que fosse. Apesar de o título, pelo seu estilo "escrachado", já dizer tudo, eu esperava uma coisa mais na base da história que havia frequentado os jornais havia pouco tempo, mas o espetáculo todo era mesmo do tipo "escrachado", para fazer rir, sem a intenção de contar qualquer história ou estória.
Eu estava com uma camisa esporte de cor vermelho-tijolo ou coisa parecida, como convinha ao calorzinho do Rio de Janeiro, e me deram um assento na extremidade de uma das fileiras bem à frente, - acho que lá pela décima fila, - coisa inesperada para quem chegou na última hora para comprar ingressos, só que fiquei sentado na ponta da fileira, junto ao corredor lateral. Mesmo assim a visibilidade de todo o palco era bem boa. Lá para as tantas, com as luzes da platéia apagadas, um dos holofotes da iluminação do palco "passeou" sôbre a platéia por alguns segundos, para depois se fixar em um dos atores, que desceu pela escadinha lateral e veio andando pelo corredor até chegar bem à minha frente, quando o holofote ficou nos iluminando, a nós dois e mais a minha esposa a meu lado.
O dito cujo começou a travar conversação comigo, fazendo-me perguntas bastante irreverentes. Pêgo de surpresa, e tímido como sempre, fiquei mudo, e mesmo que quizesse falar não teria tido oportunidade, porque êle falava sem parar, fazia perguntas e em seguida êle mesmo como que as respondia, preparando a pergunta seguinte. Fêz a platéia rir um bocado à minha custa, o pessoal das fileiras da frente olhando para traz, e muita gente das fileiras de traz ficando em pé para ver melhor.
Depois de dizer uma enorme sequência de piadas em tom de perguntas com respostas engatilhadas, o tal ator voltou para o palco e o espetáculo continuou por algum tempo, até que lá para as tantas uma atriz desceu pela escadinha do outro lado e foi caminhando pelo corredor até parar diante de um sujeito que estava de paletó e gravata com uma pasta de executivo, que não víamos mas que a dita cuja atriz mencionou. Começou a fazer-lhe perguntas e engatilhar respostas, como o ator havia feito momentos antes comigo, só que foi mais longe: em dado momento sentou-se no colo do sujeito, que reagiu, acabou empurrando-a e se levantou protestando, dirigindo-se esbravejando em direção à porta de saída.
A atriz ficou desemchabida e voltou para o palco, dizendo alguma coisa no sentido de explicar que só tinha tido a intenção de divertir e não de ofender, que aquilo tudo não devia ser levado a sério, e que contava com a compreensão do público. Arrancou uma salva de palmas fora de hora, e o espetáculo continuou sem maiores incidentes.
Quando o pano desceu e voltou a subir, lá estava o tal sujeito enfezado, de paletó e gravata e com sua pasta de executivo, no meio dos atores agradecendo os aplausos e provocando a gargalhada final. Concluí que o único palhaço de verdade naquele espetáculo, embora involuntariamente, tinha sido eu.

Friday, October 20, 2006

Baixinhos e figurões

Às vezes tenho a impressão de que as coisas acontecem para nos fazer lembrar da vida. Foi o que se passou ontem.
Fui inspecionar uns componentes de máquinas destinados a um cliente, e tive que me acocorar e me espremer para poder vê-los de perto, porque estavam debaixo de uma plataforma situada a no máximo um metro e meio do piso. E isso apesar de o armazém, enorme, estar praticamente vazio.
O local estava cheio de outras peças e partes, de modo que sofri um bocado, tendo que me equilibrar, me esgueirar, me esticar, forçar a vista para ver melhor, até que por fim me dei por satisfeito… Satisfeito? Eu estava, em realidade, me sentindo péssimo, com os joelhos e as costas doendo, suando em bicas, cansado como se tivesse carregado umas duzentas sacas cheias de feijão de sessenta quilos cada uma nas costas. A escassez de lubrificante nas juntas, que os anos vêm gastando, a falta do hábito de exercitar certos músculos há várias décadas, e a falta de uma lanterna para ler com mais facilidade, - quem ia imaginar que precisaria de uma? – entre outras coisas, deixaram-me pregado.
Quando saí daquela arapuca, olhei para o encarregado do serviço naquele local: era um baixinho que entrava naquele "recanto" com a maior facilidade, mal precisava abaixar um pouco a cabeça. Entendi logo porquê colocava as coisas debaixo da plataforma: o armazém ficava parecendo um brinco, nada fora de lugar, tudo limpo. Mesmo porque ninguém iria inspecionar nada naquele canto escuro, qualquer que fosse a bagunça que lá reinasse. Não é por acaso que o chefe daquele baixinho deve gostar dele.
Lembrei-me, por causa do baixinho, de uma série de situações vividas na COSIPA há várias décadas, que não me chamaram tanto a atenção na época mas que agora me voltaram à memória: estávamos nos preparando para iniciar a operação de uma fábrica de refratários que a empresa tinha comprado de um fabricante alemão, coisa modernosa, toda automatizada, capaz de fabricar todos os tijolos necessários para o revestimento de um dos conversores da aciaria num piscar de olhos.
Naquela ocasião estávamos às voltas com um forno rotativo da referida fábrica no qual calcinaríamos a magnesita para fabricar os tijolos, e o diabo do forno nos dava um baile daqueles: não atingia a temperatura necessária, e o material saía mal calcinado e inútil para o fim a que se destinava. Lutamos com aquele problema por vários dias, o pessoal da manutenção examinou cuidadosamente todos os motores, todas as partes móveis, tudo enfim, e gastaram um bocado de óleo de sais de ouro, - como chamávamos uns óleos lubrificantes que custavam os tubos, - para que tudo funcionasse sem qualquer problema, mas nada.
Lá pelo quinto dia de luta, - tínhamos poucos dias para resolver o problema porque o início da operação se avizinhava, - fui almoçar e dei com o Jack no restaurante. O Jack era um sujeito interessante, tipo afável, dono de boa cultura, bom gênio e senso de humor. Conversamos enquanto comíamos e êle se mostrou curioso, porque não se falava de outra coisa na usina: o tal forno que não funcionava tinha ficado famoso.
Quando acabamos de comer, o Jack disse que gostaria de ver o forno de perto, por curiosidade. Fomos até lá, rodeamos a instalação, o Jack se empoleirou num caixote para ver um indicador mais de perto e de repente fez um comentário: "há um ponto de solda aqui que está partido!"
Como já tínhamos esquadrinhado tudo, sobressaltei-me com aquela revelação. Tratei de arranjar uma escada para subir alguns degraus e verificar, espantado, que em realidade o tal ponto de solda tinha sido apenas o início de uma soldagem que não chegou a ser feita, prendendo a haspa reguladora de uma entrada de ar à alavanca que a acionaria. Como a solda não foi feita, na primeira vez em que a tal alavanca atuou o pingo de solda se rompeu, de modo que a entrada de ar simplesmente não funcionava. Instantaneamente se desfez o mistério: o forno não funcionava por insuficiência de ar para combustão.
Morremos de rir, mas depois eu fiquei um tanto ressabiado, quando tive que relatar o ocorrido ao chefe da manutenção, outro grande colega de que tenho boas lembranças, muito embora a culpa não fosse dele e nem de seu pessoal, porque se tratava de falha ocorrida na montagem da instalação.
Resolvido o problema do forno, pudemos finalmente voltar a nos ocupar com os outros aspectos da operação da fábrica de refratários, porque logo que houvesse material suficiente começaríamos a prensar tijolos.
Experimentei operar a prensa: achei difícil, incômodo, não entendia como os alemães, tão cuidadosos com todos os detalhes, tinham colocado as alavancas de comando tão longe do alcance das mãos. E como era ruim a posição para ver o quê se passava sôbre a mesa de prensagem! Uma droga, pensei. E quem iria operar aquela prensa? Estávamos distribuindo o pessoal, procurando adequar cada um à sua posição na operação, um trabalho insano, porque todos, inclusive nós, tinham que aprender fazendo, já que a montagem da fábrica tinha se atrasado e não tínhamos tido tempo para operação simulada.
Todos nos seus lugares, a operação da prensa sobrou, como uma espécie de pedra no sapato no fim da jornada. Comentei com o colega que ia ficar encarregado da operação da fábrica por algum tempo, transferido de outra unidade na última hora. Era um nissei muito simpático, meu colega da Escola Politécnica e grande amigo. Êle foi até a prensa para dar uma olhada, e de lá voltou dizendo que não tinha encontrado nenhuma dificuldade em operá-la.
Meio incrédulo, fui até lá com êle: para meu espanto, era verdade. Êle era bem baixinho, e cabia, - meio apertado, é verdade, - numa espécie de nicho que abrigava o pequeno púlpito com as alavancas e botões de manobra, de modo que chegava bem perto de tudo e manobrava tudo com facilidade. Só então me dei conta de que havia, por cima do tal púlpito, mas escondida dentro do nicho, uma pequena janela pela qual dava para ver a parte da mesa de prensagem que interessava, bem em frente ao púlpito, e controlar toda a operação. Os alemães, para os quais eu mesmo já seria um baixinho, tinham projetado a máquina para ser operada por baixinhos japoneses, porque mesmo os baixinhos brasileiros ainda seriam meio altos.
Tivemos que fazer às pressas o recrutamento do baixinho mais tampinha que pudemos encontrar, e de mais dois reservas, para colocar a fábrica em operação. (Cheguei a pensar que aquele seria um emprêgo para anões, mas depois encontramos os baixinhos necessários e tudo entrou nos eixos.)
É evidente que tinha ocorrido um êrro no projeto da instalação, e esse êrro tinha passado incólume pela nossa coordenação de projeto, pela qual eu tinha sido responsável a partir de certa data, quando os equipamentos já se encontravam no páteo da usina à espera da montagem. Em realidade, a fase de projeto e de sua coordenação já tinha terminado, e minha função era juntar toda a documentação para entregar tudo à empreiteira que iria efetuar a montagem.
Juntei os desenhos e documentos para poder conferir se estava tudo em órdem e sem faltar nada, e saí pela usina à procura dos equipamentos. Encontrei-os amontoados e deteriorados num pedaço de mangue que tinha sobrado nas cercanias de um galpão então ocupado por um pessoal de recursos humanos chefiado por um figurão, - outra história longa que qualquer dia contarei, - e vim a descobrir que o tal figurão tinha mandado esvaziar o galpão para lá instalar o seu pessoal: entre outras coisas, o citado figurão era mestre em "desapertar".
Acontece que o galpão tinha sido construído para abrigar os equipamentos da fábrica de refratários, que tinham chegado muito cedo, - o resto do projeto da usina foi que realmente se atrasou, - e o pessoal comandado pelo mencionado figurão simplesmente removeu de lá para fora os equipamentos, abandonando-os sem qualquer cuidado naquele pedaço de mangue.
Inspecionei e conferi o que foi possível e fiz um relatório, pedindo ao final que os equipamentos fossem levados a local mais seguro e subjetidos a manutenção, porque muita coisa tinha se estragado. Foi um relatório longo, enumerando tudo o que deu para ver, e dias depois houve uma espécie de ameaça velada, de que aquele relatório ia "dar samba".
Fiquei esperando o tal "samba", mas também, e principalmente, que os equipamentos fossem reparados, - algumas coisas tiveram que ser fabricadas de novo, e algumas partes compradas novamente, felizmente não muita coisa, - o que acabou causando um grande atraso que afinal resultou nos atropelos que descrevi acima quando foi necessário começar a operar a fábrica.
(Uma coisa puxa outra e acabei contando o episódio, que não deixou saudade, do relatório que ia "dar samba", e que envolveu um bocado de gente que naquela época era considerada "gente boa".)

Saturday, October 14, 2006

Água Fria Limpa Pratos?

Atenção todos vocês, que usam água fria para limpar pratos. Aproveitando uma de suas viajens pela região, - era vendedor para uma firma de produtos de limpeza, - o João foi visitar o avô, que estava por volta dos 90 mas insistia em morar sozinho numa fazendola prá lá de Montes Claros, deixando a família constantemente preocupada.
Foi chegando de noitinha e estacionando o seu fusca a pouca distância da porta da casa, debaixo de um abacateiro. Ao sair do carro, uma cachorrinha latiu e o perseguiu de perto até entrar para dentro da casa, onde encontrou o avô com o mesmo ar bonachão de sempre.
Ficaram conversando noite adentro, sem preocupação com a hora, até que o avô repentinamente resolveu preparar uma espécie de jantar: fritou uns ovos e umas batatinhas cortadas em rodelas, e requentou um arroz e um feijão que seguramente tinham sido preparados na manhã daquele dia, mais uma laranjada com laranjas espremidas na hora.
Na hora de comer, João olhou bem para o prato, no lusco-fusco da luz do lampião, e perguntou ao avô: "Êste prato foi lavado?", - ao que o avô respondeu: "É o máximo que a água fria pode limpar. Não se preocupe. Coma a sua comida..."
No dia seguinte, bem cedo, o avô novamente se pôs ao fogão, esquentando uns pãezinhos e novamente fritando uns ovos, com café com leite. João, lembrando-se do dia anterior, novamente examinou o prato, e perguntou ao avô: "Êste prato foi lavado?", - e novamente o avô retrucou: "É o máximo que a água fria pode limpar. Não ligue para isso e coma a sua comida..."
Na hora do almoço, o avô apareceu com uns hamburgers, mais o arroz com feijão requentados. Olhando novamente para o prato, João pegou o hamburger, colocou-o entre duas fatias de pão e segurou-o na mão, alegando que não tinha vontade de comer o arroz e o feijão.
Depois do almoço, João achou que estava na hora de ir andando, porque tinha reunião marcada ainda para aquele mesmo dia com um cliente na próxima cidadezinha. Despediu-se afetuosamente do avô e foi saindo em direção ao carro, mas desta vez a cachorrinha foi ainda mais chata, latindo e avançando ameaçadoramente em direção às suas canelas. Vendo que aquilo não acabaria bem, João gritou para o avô: "Vovô! A cachorrinha não quer deixar eu entrar no carro..."
Lá de dentro, o avô gritou: "Água Fria! Já para dentro!"