Observador Isento (Unbiased Observer)

A space for rational, civilized, non-dogmatic discussion of all important subjects of the moment. - Um espaço para discussão racional, civilizada, não dogmática de todos os assuntos importantes do momento.

Friday, March 30, 2007

Casal 200

Luiz A. Góes
No sábado fomos, minha mulher e eu, a um restaurante nas cercanias de Pittsburgh pelo qual sempre passamos mas no qual nunca tínhamos tido a oportunidade de entrar, para comemorar com certo atraso o aniversário dela. É um lugar interessante porque tem música ao vivo nos finais de semana e uma pequena pista para dançar, coisa pouco frequente por aqui, além de ter a fama, que se confirmou, de ter uma cozinha muito boa.
Descobrimos algumas coisas importantes para a próxima vez, como por exemplo que o bar daquele lugar é mais importante do que o restaurante - as áreas ocupadas por ambos são equivalentes, e havia muito mais gente no bar do que nas mesas jantando, - e que a música só começa às nove da noite, em contraste com a maioria dos restaurantes desta área, que pelas nove já estão próximos de fechar, faça chuva ou faça sol.
Considerando o horário da música ao vivo, chegamos meio cedo, - deviam ser no máximo sete e meia, - e havia música, mas era de disco: nem sinal dos músicos. Entretanto, deram-nos uma ótima mesa junto à janela que dava ampla visão do tablado onde se supunha que os músicos iriam ficar. Havia muito pouca gente jantando: uma mesa com algumas crianças, um pessoal que logo terminou a refeição e se retirou, umas duas mesas com pessoas idosas, e uns outros gatos pingados. Perguntamos à garçonete a que horas começava a música ao vivo, e ela explicou, como já dito, que só às nove, e que o restaurante atenderia atá as onze, mas o bar só fecharia às duas da manhã: realmente uma raridade nestas paragens!
Numa mesa ao lado da nossa havia um casal de idosos que logo apelidamos de "casal 200": 100 anos para cada um! Ocorreu a expressão devido ao dinamismo exibido, apesar da idade - conversavam de maneira muito animada, - porque nos lembramos do "casal 20" daquela série da televisão. Em realidade êles deviam estar pelos menos beirando os oitenta, ou quem sabe até um pouco mais.
Apesar de não haver intenção, não podíamos deixar de ouvir um pouco da conversa deles: o homem estava meio de costas para nós e falava baixo, de modo que quase nada do que êle dizia era audível, mas a mulher estava quase de frente e falava bastante alto devido provavelmente a algum problema auditivo, de modo que não dava para deixar de ouvir. Chamou-nos a atenção o fato de que ela de vez em quando deixava escapar alguma expressão de gíria beirando a obscenidade, o que atribuímos inicialmente ao fato de talvez se tratar de um casal idoso totalmente à vontade um com o outro.
Mas lá pelas tantas a mulher se exaltou um pouco mais devido a alguma coisa que o homem havia dito, e exclamou alto e bom som: "Bullshit!", que literalmente quer dizer "bosta de boi", mas que se usa em gíria para significar bobagem, besteira, asneira. E a frase que veio a seguir foi demasiado significativa: "Quer dizer que você rejeita a minha oferta?"
O homem respondeu lá qualquer coisa, e ela respondeu algo assim: "Deixa disso! Nós vamos lá para o meu apartamento e ninguém tem nada com isso!"
Ficou claro, cremos, que os dois estavam em pleno encontro amoroso, contrariamente ao que havíamos pensado originalmente, ou seja, de que se tratava de um velho casal que talvez tivesse havia muito completado bodas de ouro: êles estavam numa "date", como se diz aqui.
O velhinho disse alguma coisa mais, e a mulher replicou: "Se você acha que sou ousada demais para você, podemos deixar de lado a sexualidade e nos concentrar nos outros aspectos de um relacionamento íntimo e duradouro..."
O velhinho novamente fez algumas considerações e a velhinha soltou uma bela gargalhada da qual minha mulher disse ter ficado com inveja, porque fazia tempo que não dava gargalhada igual. Logo em seguida a velhinha voltou ao ataque: "Então eu lhe faço outra proposta: na nossa idade a gente precisa aproveitar ao máximo as oportunidades que se oferecem ...." Mas aí não deu mais para ouvir porque a garçonete postou-se ao nosso lado e começou a recitar os pratos especiais do dia e a dar outras informações, tendo nos trazido a bebida e o pão, e perguntando o quê gostaríamos de comer.
Pedimos alguns minutos para decidir, esperando ouvir mais um pouco da conversa do "casal 200", mas vimos desapontados a garçonete entregar na mesa deles um pequeno saco plástico contendo o que êles não tinham conseguido comer para levarem para casa, mais a conta. O velhinho pagou e se levantou, muito cavalheiresco, para puxar a cadeira da velhinha, que estava muito maquiada e penteada e se vestia com certo esmero para o estilo americano. Quando ela se levantou, sacou de uma bengala e saiu andando, seguida pelo seu namorado, que talvez tivesse aceito, finalmente, ir para o apartamento dela e continuar lá a festa, em lugar de esperar pela música ao vivo que ainda não tinha começado: naquele momento os músicos mal haviam chegado e estavam arrumando os instrumentos, altofalantes, microfones, etc.
No meio da conversa dos velhinhos, notamos uma outra dupla, - inicialmente não nos ocorreu considerar aquilo um casal, - que veio lá do bar e foi se dirigindo a uma das mesas mais ao fundo. Foi-lhes oferecida uma das mesas bem mais próxima ao tablado, mas êles a rejeitaram e foram lá para o fundo. Eram uma mulher talvez na casa dos quarenta e poucos com um homem que estava seguramente por volta dos setenta, ela bem mais alta do que êle e do tipo de ossos grandes, ou seja, uma mulher e tanto para o caminhãozinho daquele baixinho. Num instante minha mulher comentou (porque eu estava de costas para a mesa dos fundos que escolheram) que êles estavam lá aos beijos e abraços, ou seja: aquele velhinho se mostrou muito mais decidido do que o outro.
Em outra mesa próxima sentaram-se dois casais, um por volta dos quarenta e o outro por volta dos sessenta e muitos: poderiam ser pais dele ou dela. A música ao vivo começou, excelente por sinal, e num instante os dois casais da mesa ao lado, mais o velhinho com a sua altona e uns outros casais que vieram lá do lado do bar estavam na pequena pista dançando. Nós esperamos por uma música mais favorável e fomos dançar também.
Terminada a música, voltamos à nossa mesa para comermos uma sobremesa, e notamos que continuava a chegar gente, a maioria indo para o bar, mas alguns se dirigindo também ao restaurante. De repente entrou uma mulher loira alta envergando um enorme casaco de pele branco, - estava um tanto frio, mas talvez não fosse para tanto, - seguida por um bonitão também alto e grisalho, visivelmente um tanto mais velho do que ela. Aquele casaco de pele branco era bem chamativo.
Acomodaram-se no bar e, quando a música recomeçou, a tal mulher com o seu bonitão vieram dançar, ela já livre do tal casaco de pele. Deu então para ver melhor: era uma loura muito produzida do tipo "alta combustão", talvez por volta dos cinquenta, envergando um vestido tomára-que-caia justo e exibindo uma tremenda "forma física". O seu bonitão não conseguia resistir à tentação e constantemente deixava a mão da cintura escorregar bem mais para baixo, numa inequívoca demonstração de que era o dono e estava realmente "in love" com a sua loura de arrazar quarteirão, - apesar de não parecer haver ninguém ali que lhe quizesse fazer concorrência.
Foi uma noite bastante divertida, agradável e cheia de surpresas, que esperamos repetir qualquer dia desses, - mas acho que quando formos vamos pedir ao gerente do restaurante para convocar de novo o "casal 200", mais a loira com o bonitão, para assegurar que a coisa fique completa com todo o colorido do sábado passado.
A loira e o bonitão nem tanto, mas o "casal 200" foi realmente uma grande fonte de inspiração…
(Abril/2005)

Friday, March 23, 2007

Dois cariocas estrangeiros

Luiz A. Góes
O primeiro chefe que tive, o chefão do escritório de engenharia em que comecei a trabalhar quando tinha treze anos de idade, era um inglês mais carioca do que todos os cariocas que já conheci. Morava em São Paulo contrariado, obrigado ao sacrifício porque quase todos os contratos importantes do escritório naquela época eram com firmas ou instituições de São Paulo.
Era um tipo curioso em muitos aspectos, a começar pela estatura, - quase uns dois metros, - pelo fato de falar de maneira esparramada e bonachona um carioquês com leve sotaque britânico, pelo eterno senso de humor e otimismo de atitude, e por sempre responder, quando alguém perguntava como ia, com a mesma frase: "Graças a Deus vou mal" (êle tinha problemas com a coluna, que lhe causava dores e outros incômodos - coisa comum em gente alta, como vim a aprender com os anos).
Acho que, quando dizia aquilo, todos logo pensavam no tal problema e mudavam de assunto, mas um dia alguém retrucou: "Porquê graças a Deus, se vai mal?", ao que êle respondeu: "É porque poderia ser muito piór…" Até nisso se manifestava o bom humor e o otimismo que o caracterizavam.
Aquele carioca inglês me contratou, com treze anos de idade, como desenhista, fiando-se apenas na palavra daquele que eu considerava meu professor de desenho e pintura naquela época, sem jamais ter visto nada do que eu tinha feito ou sabia fazer. Foi extremamente amistoso e simpático quando me entrevistou, inclusive me dizendo que eu não precisava ficar nervoso, porque seguramente estava. Lembro-me de êle ter dito: "Não se preocupe, porque eu não como gente, meu rapaz!"
Pena que o perdi de vista: ao fim e ao cabo os contratos foram terminando, êle voltou a residir no Rio de Janeiro e eu acabei sendo demitido. (Parece que com o tempo todos foram, até mesmo um sobrinho do chefão que trabalhava lá e que vim a reencontrar mais tarde em outra empresa.) Mas não há dúvida que aquele período em que trabalhei naquele escritório foi o que me colocou no caminho da engenharia, que veio a ser a minha principal ocupação profissional durante toda a vida.
Os anos passaram e eu me lembrava periodicamente daquela figura, - aquele carioca estrangeiro, - como sempre desde que o conheci, até que um outro tipo me fêz voltar a pensar nele com maiór intensidade. Esse outro, ainda mais marcante, por coincidência também se considerava carioca embora fosse estrangeiro.
Conheci-o quando fui visitar a família de minha mulher, ainda antes de me casar. Chegando lá no interior, meu futuro sogro me apresentou aquele amigo que avaliei já bastante idoso, sem cabelos na cabeça a não ser umas penugens nos lados e atraz, vestido de maneira inusitada para o calor daquelas paragens, - de gravata e paletó o tempo todo, se bem que de linho, calçando umas botinas muito bem engraxadas - e falando com um sotaque português bastante carregado. Meu sogro também era português e conservava seu belo sotaque, mas bem mais amaciado pela longa convivência com sua esposa e filhas.
Seu Guilherme, - assim se chamava o amigo, - foi logo tratando de me crivar de perguntas, e tanto queria saber a meu respeito quanto falava de si próprio e de pessoas que fui compreendendo serem seus parentes, notadamente dois de seus filhos. Mas era uma situação curiosa, porque ninguém me explicou exatamente como era aquela amizade, tendo em conta que o Seu Guilherme era bem mais velho do que o meu futuro sogro. Na conversa disse-me que tinha setenta e cinco anos, - talvêz tivesse mesmo, mas parecia ter mais - e que tencionava ir à fazenda para andar a cavalo, entre muitas outras coisas que me pareceram puras bravatas. Mas depois vi meu sogro comentando que precisava dar um jeito de fazer com que o Seu Guilherme desistisse da idéia, porque se êle viesse a cair do cavalo, ou tivesse qualquer outro tipo de acidente, seria um problema daquele tamanho, - e não era difícil de acontecer.
Sempre que perguntado como ia, Seu Guilherme respondia com a mesma frase: "Por milagre ainda estou vivo". E sempre explicava, face à inevitável surpresa do interlocutor, que era um verdadeiro milagre ter chegado àquela idade, com tantos perigos, doenças, ameaças e coisas que tais sempre ao redor.
Sua maneira de dizer tudo o que lhe vinha à cabeça fazia dele uma pessoa interessante e por vêzes um pouco desconfortante, sempre pensando em voz alta, o que êle compensava com sua grande simpatia.
Arranjando coisas para fazer com o amigo, meu sogro o levava a visitar seus amigos e conhecidos, particularmente aqueles também de origem portuguesa, e era engraçado ver aqueles homens de meia idade ou avançados em anos se lembrando de coisas curiosas da terrinha e trocando reminiscências. Pelas observações e reações do Seu Guilherme, podia-se ver que se tratava de pessoa experiente em negócios. Fazia perguntas sem fim aos visitados sôbre suas atividades, perguntava de maneira muito direta se os negócios estavam dando lucro, dava palpites sobre tudo o que via, às vêzes causando um certo incômodo aos interlocutores.
Numa dessas visitas, o visitado, amigo de meu sogro que tinha uma distribuidora de bebidas, resolveu lá para as tantas devolver as perguntas, e começou: "Qual é o seu ramo?", e o Seu Guilherme respondeu, sem pestanejar e deixando todo mundo mudo: "Eu sou agióta, homem…" Naquela idade, era evidente que devia viver de alguma renda, mas a franqueza foi desconcertante.
Aos poucos fui sabendo mais sobre aquela figura ímpar: era pai de um amigo de meu sogro que vivia em Portugal, - e a quem vim a conhecer anos mais tarde. Na festa de meu casamento Seu Guilherme havia lá estado, muito ativo e falante, aparecendo em grande número de fotos que foram muito comentadas por seu filho, esposa e netos.
Um belo dia, já casado e estando minha filha mais velha com uns dois anos ou mais, abro a porta de casa ao chegar do trabalho e dou de cara com o Seu Guilherme, muito sorridente, sentado no sofá de nossa sala de visitas lá em Santos. A seu lado estava uma senhora bastante idosa e também muito sorridente, que vi logo ser carioca da gema pelo sotaque especialíssimo, pessoa de uma simpatia infinita e lucidez ainda maior do que a do Seu Guilherme. Era uma velhinha surpreendente inclusive na maneira de se vestir: parecia estar no começo do século (o XX), com um vestido escuro algo longo de gola de babado de crochê branca, um chapéuzinho com um véu protegendo parcialmente o rosto, luvas na mão, uma sombrinha de estilo antigo mais ou menos da mesma cor do vestido, e outros detalhes que me escaparam mas que minha mulher depois se encarregou de lembrar.
Novamente Seu Guilherme respondeu com a frase "Por milagre ainda estou vivo" quando perguntei como estava, e depois na conversa isso foi ainda muito mais evidenciado. E foi logo apresentando a velhinha simpática: "Apresento minha esposa…"
Fiquei meio sem ação, surpreendido com a cena e a situação, até mesmo porque eu nunca havia pensado naquele lado de sua vida, mas a verve dos dois não permitiu que o meu espanto continuasse por mais do que alguns poucos segundos. A senhora, cujo nome não guardei, era tão falante quanto o Seu Guilherme, e os dois pareciam felizes da vida. Contaram que dias antes, lá no Rio onde moravam, haviam sido abordados por assaltantes a mão armada, dois sujeitos com revólveres que lhes exigiram a carteira, o relógio, as jóias e tudo o mais, mas a senhora reagiu a sombrinhadas. Os dois sujeitos começaram a dar tiros, mas por sorte não os atingiram e se mandaram sem nada levarem. "É mesmo um milagre", repetia o Seu Guilherme.
A conversa ficou bem descontraída e a senhora disse, em certo momento, que conhecia Seu Guilherme havia cinquenta anos, sem mencionar por quanto tempo estavam casados. Por sua vêz Seu Guilherme comentou que ela conhecia a maior parte de sua vida, porque estava com setenta e cinco anos… Ainda?, pensei, - êle continuou a ter setenta e cinco anos até que o perdi completamente de vista anos depois.
A coisa ficou mais clara depois que vim a saber melhor da história da família: Seu Guilherme havia ido para o Brasil com a mulher, e pouco depois fêz com que seus dois filhos e respectivas esposas o seguissem. E assim meu sogro se tornou amigo íntimo de um deles. Nem a mulher de Seu Guilherme e nem os seus filhos e esposas se acostumaram no Brasil e decidiram voltar para Portugal, mas Seu Guilherme deixou-se ficar no Rio de Janeiro. Pela correspondência de meu sogro com o amigo português ficamos sabendo que a esposa de Seu Guilherme, da qual estava separado em têrmos práticos havia várias décadas, falecera em Portugal, de modo que ficou muito fácil entender que o Seu Guilherme, com "setenta e cinco anos", estava recém casado em segundas núpcias, seguramente com a pessoa que havia tomado conta dele durante todo aquele tempo. Com um pouquinho de imaginação isso poderia dar uma história de amor digna de um filme.
Mas só então deciframos o significado da visita de Seu Guilherme com a esposa: foi a maneira de êle anunciar a seus descendentes que havia se casado de novo, pelo jeito depois de esperar bem uns cinquenta anos para ter condições legais para tanto. Isso ficou ainda mais evidente quando contamos aos meus sogros sobre a visita: a curiosidade a respeito da velhinha simpática foi grande, e era evidente que aquilo foi parte importante dos relatos epistolares subsequentes. E êle tinha escolhido justamente a nós para sermos os repórteres involuntários de sua história mais recente.
Cumprido o objetivo da visita, Seu Guilherme como que se transformou numa série de notícias através de meu sogro de tempos em tempos, porque quase não mais o vimos. Parece ter se esvaido no tempo e no espaço, deixando atraz de si apenas aquela sua inesquecível onda de simpatia.
Nunca me esqueci e nem me esquecerei desses dois cariocas que eram estrangeiros, cada um tendo marcado profundamente minha vida à sua maneira.

Sunday, March 18, 2007

Deu o burro

Luiz A. Góes
Boa parte de minha meninice foi passada em duas casas em que residimos na Vila Romana, em São Paulo. A primeira delas ficava num conjunto de casas geminadas na Rua Spartaco.
Quando nos mudamos para lá, depois de termos morado alguns anos naquele ainda então remoto Alto da Lapa, a Rua Spartaco era uma das principais do bairro, a única rua calçada pela qual não trafegava ônibus. Numa das esquinas do quarteirão havia um bar cujos donos eu nunca soube bem quem eram. Na esquina em frente havia uma padaria e confeitaria de uns portugueses dos Açores. Lá na outra ponta havia uma loja de armarinhos de um velhinho libanês no lado de cá, e um armazém de secos e molhados daqueles antigos de uma família de japoneses no lado de lá.
Os portugueses eram bem falantes e amistosos. O velhinho libanês era pachorrento e ficava horas a fio sentado numa cadeira na calçada à porta de sua loja, sòzinho, sem falar com ninguém, apenas apreciando o parco movimento da rua. O japonês dono do armazém era um tipo meio engraçado que gostava de mandar aqueles cartões postais com piadas para os amigos no Natal. Não os assinava, apenas escrevia no verso: "Feriz Natal": todo mundo adivinhava na hora quem tinha mandado..
Virando a esquina do bar, na rua Tito, havia uns estabelecimentos meio esquisitos que minha mãe e meu pai recomendavam veementemente evitar até mesmo passar em frente. Com o tempo vim a aprender que um deles era uma espécie de oficina mecânica que de vêz em quando consertava veículos, ainda um tanto raras naquela época porque no quarteirão inteiro havia apenas um automóvel, uma baratinha daquelas antigas que o porta-malas se abria para revelar um assento extra para duas pessoas. E ninguém mais tinha automóvel pela redondeza que a gente soubesse. Aliás, pouquíssimas eram as casas no bairro que tinham garage.
Os sujeitos da tal oficina viviam constantemente bebendo no bar e meu pai os considerava uns bêbados desqualificados.
Um outro estabelecimento era ainda mais esquisito: vim a descobrir, depois de muito tempo, que era um sucateiro de papéis e papelões. Não por acaso estava ali, pois no quarteirão contíguo, quase em frente à padaria e confeitaria, encontrava-se a entrada principal da Companhia Melhoramentos, fabricante de papéis e editora de livros. Foi devido à proximidade da Companhia Melhoramentos que vim a conhecer Oswaldo Storni, o memorável desenhista que lá trabalhava ilustrando livros infantis, que me entronizou na arte do desenho e da pintura e que, por vias travessas, me colocou no caminho da profissão de engenheiro, mercê de uma oportunidade que me foi oferecida, através dele, para trabalhar como desenhista num escritório de engenharia.
Entre o armazém de secos e molhados e a casa do tal sujeito que tinha a baratinha, havia um par de casas também geminadas, e descobrimos que numa delas havia uma mulher que era "corretora zoológica", fazia o jogo do bicho. Nós ouvíamos falar no assunto, mas ninguém de nossa casa tinha jamais ido até lá, até que um dia minha avó veio nos visitar e, como era louca por uma fezinha, foi logo perguntando se não havia algum lugar para jogar no bicho por perto.
"Vai, bichinho, fazer um joguinho para a vovó. Sonhei com uma mulher muito gorda: hoje vai dar a vaca!" E não é que dava mesmo? Os sonhos de minha avó pareciam infalíveis, mas ela jogava pouquinho, dava apenas para ter a alegria de ganhar uns tostões no final do dia.
Só que nessas visitas aprendi que todo mundo, ou quase, nas redondezas, jogava no bicho, porque de manhã a casa da tal mulher tinha um movimento danado. Uns quarteirões mais abaixo havia uma delegacia de polícia, mas nunca sequer pensamos que a presença dela pudesse representar qualquer problema para aquela distração.
Um dia o vizinho da casa pegada à padaria e confeitaria comprou um caminhão. Como não havia garage, o diabo do caminhão ficava estacionado na rua, quase em frente à nossa casa. À noite, logo depois do jantar, - ainda não havia televisão, - os rapazes e moças do quarteirão costumavam se reunir para conversar e fazer pequenas brincadeiras. Eu, que era bastante crescido para a idade, dava um jeito de participar daqueles encontros, embora fosse bem mais novo do que todos os demais.
O tal caminhão veio estragar um pouco aquelas horas agradáveis, porque ficava bem no meio do caminho. Mas logo inventamos uma utilidade para êle: havia umas brincadeiras em que o perdedor tinha que cumprir uma espécie de castigo ou pena, e uma das penas que inventamos foi dar um certo número de voltas em torno do caminhão…
A Rua Spartaco já era calçada e também iluminada, ao contrário das demais, porque bem lá no topo da subida, no final dela, havia, - e ainda há, - um hospital, único da região naquela época. A maior comoção no bairro era quando alguma ambulância subia a rua com a sereia tocando em disparada. Mas geralmente o pedaço era bastante calmo, até mesmo modorrento durante boa parte do dia, ficando mais movimentado nos horários de entrada e saída dos empregados da Companhia Melhoramentos. Quem não trabalhava nela descia a rua a pé para tomar um ônibus alguns quarteirões mais abaixo e ir trabalhar em bairros mais próximos do centro ou na Lapa.
Um dia correu o boato de que o dono da oficina mecânica tinha comprado um automóvel que estava consertando para êle mesmo. Dei um jeito de ir dar uma espiada e vi que se tratava de um carro meio grande mas aparentemente bem velho, que ficou estacionado em frente à tal oficina sem se mover por muito tempo. É que o tal carro estava em realidade sendo reconstruido…
Numa tarde de domingo ouvimos repentinamente um enorme estrondo que não sabíamos de onde vinha. Minha mãe perguntou por cima do muro do quintal se a vizinha sabia de alguma coisa, e ela também estava alarmada porque não sabia do que se tratava. Percorremos depressa a casa em direção à porta da frente, e ao abrí-la vimos que havia uma aglomeração da vizinhança junto ao caminhão do vizinho da frente e ao tal carro do dono da oficina, que estava no meio da rua fumegando e com o pára-brisa quebrado. O caminhão estava com a ponta trazeira de sua carroceria quebrada, e o automóvel tinha a lateral bem amassada.
Não foi muito difícil de entender que o automóvel havia se chocado contra a trazeira do caminhão depois de virar a esquina atabalhoadamente. Parece que o tal mecânico tinha colocado o dito cujo em condições de trafegar, deu-lhe partida mas se esqueceu de verificar os freios, de modo que, tendo ganho velocidade, foi incapaz de brecar quando viu o caminhão à sua frente depois de fazer a curva sem reduzir nem um pouco a velocidade.
O coitado estava meio atordoado e com cara de desapontado tentando explicar ao pessoal o que havia acontecido, enquanto se formava uma espécie de conferência muito peculiar do pessoal, discutindo se no dia seguinte deviam jogar no número da chapa do carro ou no da chapa do caminhão. Uns defendiam o número da chapa do carro, que havia causado o acidente, enquanto que outros diziam que o caminhão estacionado alí é que havia sido o causador de tudo. E discutiam mais, se deviam jogar nos finais ou em todas as combinações possíveis dos números, etc, etc.
Eu não entendia nada daquilo, - os joguinhos de minha avó eram os mais simples possível e eu apenas ia levar o dinheiro da aposta e buscar o resultado no fim do dia sem interferir na formulação da aposta, - de modo que fiquei escutando curioso, e no dia seguinte tratei de ir perguntar na padaria quem havia ganho.
O simpático açoreano disse que pelo jeito ninguém, porque até àquela hora, - já eram umas seis da tarde, - não tinha ouvido nada.
Mais um pouco formou-se uma roda de discussão na porta do bar e minutos depois o pessoal começou a se dirigir para a outra ponta do quarteirão. Fui atrás e vi quando bateram na porta da loja de armarinhos que já estava fechada. O velhinho libanês veio abrir e ficou meio atônito diante daquele grupo numeroso que aparentemente jamais lhe havia antes dirigido a palavra.
O mais enfezado deles perguntou: "Quê número o senhor jogou?" O velhinho respondeu que em vários, enumerando alguns, e o outro continuou, meio zangado: "Porquê o senhor jogou nesses números? O senhor achou que o mecânico é um burro? Êle estava era bêbado…"
O velhinho começou a ficar mais descontraído e risonho, respondendo em tom de galhofa: "Eu vi o acidente e vi o que o causou: tinha que jogar no burro."
O pessoal ficou mudo olhando para êle, que acrescentou: "Eu estava sentado na frente da loja, e como era domingo não tinha ninguém passando. De repente apareceu um burro solto que foi andando lá para o fim do quarteirão bem no meio da rua. Quando o carro virou a esquina teve que desviar do burro e bateu no caminhão. O burro saiu correndo e sumiu, mas eu vi que foi isso. Foi o burro que causou o acidente."
O pessoal começou a caminhar de volta, agora discutindo porquê aquele palhaço do mecânico não tinha nem sido capaz de dizer que havia topado com um burro no meio da rua…

Friday, March 16, 2007

Vinhos

Luiz A. Góes
Não entendo nada de vinhos, mas gosto de bons vinhos. Por isso mesmo, fico sempre fascinado quando alguém demonstra saber alguma coisa e pode me dar uma aula sôbre esse assunto, sempre tão... - como direi? - ... saboroso.
Cresci vendo meu avô, um italiano de boa cepa, tomar vinho em todas as refeições, - acho que nunca o vi bebendo água, - e êle gostava de nos fazer experimentar, quando éramos pequenos, preparando aquelas "sangrias", com um bocado de açúcar e um pouquinho de vinho tinto para dar côr, que adorávamos.
Mas mesmo assim só vim a começar a gostar de vinhos depois de adulto, e de ter passado por algumas experiências que considero marcantes com esse tipo de bebida. Vou tentar relatar algumas delas.
Na chegada a Lisboa, há algumas décadas, minha mulher e eu vimo-nos como que "jogados fora" no aeroporto, porque devido ao tremendo atraso do vôo (da TAP) os conhecidos que iam nos receber não estavam lá. Tínhamos conhecido no avião um casal (êle francês, ela alemã), que estavam na mesma situação, e o francês sugeriu irmos para um hotel, que êle já conhecia, chamado Residência América. Bom e relativamente barato.
Dali a pouco o francês bateu em nosso quarto dizendo que êles iam dar uma volta na cidade e convidando-nos para irmos também. Minha mulher e eu resolvemos acompanhá-los e deixar para procurar os nossos conhecidos mais tarde.
Perambulamos pela cidade e mais ou menos na hora do almoço tomamos um barco para ir a Cacilhas, que fica no outro lado do Tejo. Lá encontramos um pequeno restaurante onde pedimos umas sardinhas grelhadas com maionese. A maionese foi preparada na hora em nossa presença, e com um bom vinho espumante foi um tal de comer sardinhas que não se acabava. Quando pensamos em ir embora, senti que minhas pernas não me aguentariam, depois de todo aquele vinho. Minha mulher disse a mesma coisa, e o francês pediu de novo, para minha surpresa, a lista de vinhos. Estudou-a demoradamente e pediu uma garrafa de um vinho bem velho. Tomamos apenas um copo cada um, - aquilo caía como se fosse um néctar celestial, - e quando acabamos de beber parecia que não tínhamos bebido nada, nem o vinho espumante e nem o vinho velho.
O francês disse que a última garrafa tinha sido o "apaga-besteiras".
Em anos subsequentes tive numerosas oportunidades de tentar aplicar aquela "técnica", mas a coisa nunca mais funcionou. Acho que é porque é preciso ser francês...
Poucas semanas depois vimo-nos instalados na Áustria, onde permaneci por alguns meses em meu treinamento profissional. E então me acostumei rapidamente a beber vinho, porque a Áustria tem excelentes vinhos brancos, - deve ter vinhos tintos muito bons também, mas os brancos eram os que faziam mais sucesso. E era interessante porque jamais se abria uma garrafa: pedia-se o vinho, e o garçom ou a garçonete nos trazia uma estante daquelas do tipo de laboratório químico com um enorme balão de vidro transparente cheio do dito cujo vinho. A gente então ia se servindo, abrindo a torneirinha, enchendo os copos e bebendo. Jamais um balão daqueles foi devolvido com vinho sobrando dentro. Eu nunca tinha bebido vinho austríaco antes, e fiquei sabendo que êles eram muito pouco engarrafados e exportados, porque os austríacos bebiam tudo, deixando muito pouco para ser mandado para fora do país.
Lembro-me que um dia nos disseram que estávamos na estação de vinho verde, porque os vinhos do ano começavam a ficar prontos e a serem degustados naquela época. Fomos uma noite a um restaurante numa pequena cidade próxima onde havia produção de vinho, e lá tomamos um bocado de vinho verde, comendo uma bela comida e ouvindo valsas de Strauss que uma orquestra tocava. Foi uma noite memorável, mas não foi muito fácil dirigir de volta para casa. Nem sei como algum policial não me impediu de dirigir, porque na Áustria costumava haver um policial à porta do restaurante fiscalizando e impedindo quem tivesse bebido além da conta de dirigir.
Houve uma época, em New York, em que eu era como que obrigado a escolher vinhos para servir a pessoas que convidávamos para aqueles almoços e jantares de negócios. Eu passava apertado quando não havia mais ninguém para me ajudar, porque os meus parcos conhecimentos podiam facilmente me trair. Eu procurava repetir vinhos que tinham sido servidos em refeições anteriores, o que nem sempre funcionava devido à grande variedade existente no mercado americano. Às vezes o restaurante oferecia o mesmo vinho de diversas safras diferentes, com o preço variando tanto mais para cima quanto mais antiga era a safra. Algumas vezes, dependendo de quem estávamos convidando, eu me via compelido a escolher safras bem antigas quando me declaravam que estavam sem estoque da última safra daquele vinho. Houve ocasiões em que o preço do vinho excedia bastante o da refeição…
Convivendo com essa situação e falando de vinhos com frequência, um belo dia o presidente de minha empresa começou a me dar uma espécie de aula sôbre vinhos: dizia uma porção de coisas sôbre vinhos do Reno, sôbre safras pares e safras ímpares, sôbre vinhos do Nappa Valley, sôbre vinhos italianos, vinhos alemães, e por aí vai, mas eu não consegui guardar muito do que êle disse de maneira ordenada: lembro-me daquelas informações de maneira meio embolada. Êle me aconselhou a comprar um livro sôbre o assunto para ler, o que prometi fazer mas nunca cheguei a cumprir. Êle não conhecia os vinhos austríacos: nisso eu estava melhor do que êle, mas resolvi não tocar no assunto por uma questão de respeito, porque êle era um bom homem.
Notei depois que algumas daquelas arengas sôbre vinhos êle repetia de vez em quando, principalmente quando estávamos em companhia de pessoas mais sofisticadas, talvez querendo demonstrar ser pessoa de boa cultura, conhecedor do mundo e das coisas. (Falava disso e das coisas que cultivava em sua fazenda, particularmente dos morangos, sôbre os quais dissertava longamente.)
Numa dessas ocasiões, em que jantávamos com um dos donos da firma de advocacia de Wall Street que nos servia, um indivíduo extremamente brilhante todas as vezes que o vi atuando de alguma forma, o meu presidente fez questão de pedir um vinho de preço bem salgado, mas que foi muito louvado pelo nosso convidado, que o elogiou repetidamente enquanto bebia. Não demorou muito para começarmos a ouvir uma daquelas aulas sôbre vinhos que o bom homem costumava dar: seu inglês era bastante fraco, e o advogado não falava português, de modo que fui como que intimado a servir de intérprete para boa parte da tal lição.
Nosso convidado ouvia com atenção, mas depois descobri que era por pura educação, - o meu presidente deve ter chegado, intimamente, à mesma conclusão, - porque a certa altura da conversa, em que o nosso hóspede contava que estavam introduzindo o uso de computadores no escritório de advocacia para facilitar a consulta a casos antigos, ou seja, à jurisprudência, que funciona muito na prática jurídica americana (imaginem só quanto tempo faz isso!), o meu presidente, sempre muito perspicaz, resolveu fazer uma pergunta sôbre as atividades do início da carreira do nosso convidado.
Ficamos sabendo então que êle tinha trabalhado, quando recém-formado, para uma firma de advocacia especializada, entre outras coisas, em grandes inventários. Imaginei logo que devia se tratar de algo muito especial, e pedi que êle desse um exemplo de algum caso que tivesse considerado extraordinário nessa área de inventários.
E assim êle contou que tinha feito parte de uma equipe encarregada da liquidação final do patrimônio de um triliardário que tinha falecido sem ter herdeiros diretos. Depois da divisão de todos os bens representados por ações, valores e propriedades de diversos tipos entre os herdeiros indiretos, restou fazer a liquidação da mansão em que o tal sujeito tinha vivido, um palacete em Manhattan que valia milhões como imóvel e pelas coisas que continha, notadamente móveis de altíssima categoria, obras de arte e utensílios de toda sorte, e uma enorme adega no sub-solo.
A instrução do representante dos herdeiros era para que tudo fosse vendido em sucessivos leilões, e o que fosse apurado fosse progressivamente sendo dividido entre os herdeiros. A última coisa a ser vendida seria, evidentemente, o imóvel, porque não teria sentido tirar tudo de lá antes de vender. E assim organizaram leilões e mais leilões, até que só sobrou a adega no sub-solo.
Passaram vários dias fazendo uma relação de tudo o que havia lá e ficaram maravilhados com o que foram encontrando. E no relato o nosso hóspede arregalava os olhos e ia citando os nomes dos vinhos de alta estirpe que encontraram e as respectivas safras, coisas do arco-da-velha de que eu nunca tinha nem ouvido falar. Eu olhava para a cara do meu presidente e êle estava mudo, tendo parado de comer e ouvindo pensativamente.
Pronta a lista de tudo, por dúzias e mais dúzias, anunciaram para os principais restaurantes de New York que tudo aquilo estava à venda pela melhor oferta, bastando que cada um apresentasse os preços que gostariam de pagar. E assim, poucos dias depois estava tudo vendido: os compradores compareceram e êles mesmos fizeram a remoção daquelas garrafas todas em pouco tempo.
Sobraram, entretanto, numerosas garrafas das chamadas "dúzias incompletas", e o representante dos herdeiros, quando consultado a respeito do quê fazer com elas, disse que os advogados que tinham trabalhado no caso podiam ficar com elas. Êles eram quatro, e assim dividiram tudo entre si e cada um carregou um bom número de garrafas em seu automóvel, já comemorando os numerosos jantares memoráveis que teriam dali em diante, com aqueles vinhos extraordinários à disposição.
Combinaram que fariam inicialmente quatro jantares, um na casa de cada um deles, somente para êles e suas esposas ou namoradas, para comemorar. E assim, poucos dias depois reuniram-se na casa de um deles, tomaram aperitivos e comeram salgadinhos e finalmente sentaram-se à mesa em grande estilo. O dono da casa abriu uma daquelas famosas garrafas e derramou um pouquinho do vinho em cada copo, para todos experimentarem antes de beberem de verdade.
Foi um momento de horror! O vinho estava avinagrado!
Lamentando a má sorte, o dono da casa puxou outra garrafa, que abriu e experimentou cautelosamente: também tinha se transformado em vinagre!
Abriu uma terceira: a mesma coisa! E assim, acabou abrindo todas as garrafas que tinham lhe cabido, para constatar que todas elas continham apenas o vinagre no qual o vinho tinha se transformado.
Desapontados, esqueceram o jantar e cada um correu para sua própria casa para, depois de abrirem as garrafas que tinham, telefonarem aos demais para dizer que todo o vinho que tinham estava avinagrado.
Além de terem perdido o esperado lauto jantar, perderam a noite de sono, porque começaram imediatamente a pensar o quê aconteceria quando aqueles restaurantes, que tinham pago fortunas pelos vinhos, começassem a reclamar. Sim, porque se aquelas garrafas tinham virado vinagre, seguramente todo o vinho vendido também estaria avinagrado.
Chegaram a combinar alguma estratégia para sair daquela situação, a forma como apresentariam a questão aos herdeiros para que êles devolvessem o dinheiro a fim de poderem indenizar os restaurantes, e como fariam para evitar que o assunto virasse notícia de jornal, que alguém da imprensa descobrisse e tivesse a idéia de publicar alguma coisa, o que seguramente prejudicaria profundamente o alto conceito do escritório de advocacia para o qual trabalhavam.
Passou-se uma semana, entretanto, e ninguém reclamou nada e nem ninguém falou no assunto. Esperaram mais uns dias e, como nada acontecesse, resolveram tirar a coisa a limpo: combinaram de ir jantar em um dos restaurantes e pedir um daqueles vinhos. Para grande surpresa deles, o vinho que pediram no restaurante estava perfeito. Quizeram falar com o gerente a respeito da compra dos vinhos da mansão do triliardário, e o mesmo se mostrou muito satisfeito com a compra que o restaurante tinha feito, sem nem de leve mencionar qualquer problema com aqueles vinhos.
Foram jantar no dia seguinte em outro daqueles restaurantes, e a mesma coisa se repetiu: estava tudo na mais perfeita órdem.
Diante do que para êles era um mistério, começaram a tentar entender o quê tinha acontecido, e finalmente um especialista que acabaram conhecendo esclareceu tudo: "lembram-se que quando venderam os vinhos os compradores disseram que iriam êles mesmos buscar e que vocês não precisavam nem tocar nas garrafas?" Êles se lembravam!
"Pois é… é que êles sabiam que vocês, como advogados, não saberiam lidar com aquêles vinhos tão velhos, e por isso mesmo extremamente sensíveis a manipulação inadequada!"
Estava desfeito o mistério: repartindo as garrafas que sobraram, nem tinham pensado que estavam arruinando o vinho com suas maneiras entusiasmadas e… desastradas.
Fiquei pensando com meus botões: se eu tiver alguma garrafa de vinho muito velha em casa, vou abrí-la o mais cedo possível e beber o vinho, porque com toda certeza não saberei como manipular vinho velho. Foi a minha lição daquela noite. E não me lembro de ter ouvido novamente o meu presidente dando aulas sôbre vinhos…

Friday, March 02, 2007

Até as pedras

Luiz A. Góes
Fazem uns bons vinte e cinco anos, eu viajava pelo Brasil afora fazendo consultoria empresarial. Foram anos para mim muito enriquecedores, tanto profissionalmente quando do ponto de vista humano e cultural, porque tive a oportunidade de ver, de ouvir, de sentir, e de tentar compreender pessoas de todos os tipos, em um sem número de lugares, em miríades de situações, frequentemente me vendo bastante envolvido nelas e pelos seus protagonistas.
Tenho um repertório bastante grande e variado de histórias para contar sôbre esse período, que deixou saudade apesar do desconforto material em que eu me via a cada passo devido à grande falta de infraestrutura na maioria das localidades que visitei.
Hospedei-me em hotéis, hotelecos, pensões, hospedarias, pousadas, casas de famílias, dormi em camas sem roupa de cama, em redes, em sofás, em poltronas, comi comidas mal feitas, deixei de comer com medo de pegar algum troço, andei de ônibus, de trem, de caminhão, de carroça, de barco, de automóvel e até de avião. Assisti a espetáculos, quermesses, festas, leilões, vi matar bois, porcos, carneiros, e até em funerais estive. Mas valeu: é inesquecível.
Certa ocasião um cliente que tive em Fortaleza tinha uma filial numa cidade do interior do estado, e era naquela filial que se realizavam as atividades produtivas da empresa, de modo que tive que ir até lá para ver como eram as coisas.
Arranjaram-me uma pequena pick-up com um motorista que usava chinelos e a camisa para fora da calça. Não falava muito, mas o pouco que dizia era geralmente significativo. À medida que íamos passando pelas proximidades de cada localidade, cada pequena ou grande cidade ao longo da estrada, êle dava algumas informações resumidas sôbre a mesma: parecia ser um grande conhecedor da região e de seu povo, porque nunca deixava de se referir à gente do lugar. Pena que eu não dispunha de um gravador para registrar o que ouvia.
Mas fui notando que êle se referia a certas coisas com certa ênfase, tais como se a localidade tinha super-mercado, e se tinha motel. Fui me dando conta de que se tratava de coisas que funcionavam como símbolos de progresso aos olhos daquela gente naquela época: cidade sem super-mercado e sem motel era considera um simples vilarejo sem futuro!
Quando nos aproximávamos de Quixadá, havia uma grande área bastante plana com vegetação um tanto escassa na qual existia uma grande quantidade de pedras com formato de pequenos Pães-de Açúcar com, talvez, uns 8 a 10 metros de altura. Aquelas pedras chamavam muito a atenção, pareceram-me bastante inusitadas, muito numerosas e com seus formatos muito semelhantes.
Enquanto eu admirava o panorama, o meu guia-motorista foi desfiando o que sabia sôbre Quixadá, para no fim ressaltar que a cidade tinha super-mercado, e tinha motel: tinha sido a primeira a tê-los naquelas plagas, cidade vanguardeira!
Lá para as tantas uma das tais pedras me deixou intrigado, porque tinha uma forma muito diferente das demais: parecia, vista de longe como estávamos, uma enorme galinha sentada em seu ninho pondo ovos ou chocando pintos.
Comentei com o guia-motorista, e êle retrucou sem demora: "É, seu doutor: em Quixadá até as pedras são galinhas… ninguém segura a moçada…"

Thursday, March 01, 2007

Dúvida

Luiz A. Góes
Lá naquela cidade do interior das Gerais o pessoal vivia num cortado. A TFM, chefiada pelo padre que comandava as beatas da igreja, não dava folga a ninguém, e a turma vivia tentando inventar coisas que pudessem remediar a situação.
Mas antes de melhorar, as coisas só pareciam querer piorar.
Os poucos clubes sociais andavam na piór, porque havia se formado uma campanha para impedir a venda de bebidas alcoólicas, e além disso haviam acabado com as salas de jogo em todos êles. E eram bem poucos os que conseguiam a compreensão das esposas para organizar um baralhinho em casa.
Um motel que alguém teve a idéia de construir teve que fechar as portas depois que a TFM começou a organizar grupos para ir rezar o terço na entrada todos os dias das dez da noite à uma da manhã.A casa da Jandira, último bordel que sobrou lá na ponta da cidade, estava a ponto de abrir falência.
O padre vigiava tudo, ficava de binóculo lá na torre da igreja antes da missa do domingo para ver quem vinha e quem não vinha, e depois da missa para ver quem encontrava com quem, quem saía com quem, para onde iam e o que faziam.
Além disso, o confessionário era um instrumento poderosíssimo: as beatas entregavam toda semana relatórios completos de todos os diz-que-diz-que, de todos os boatos, de todas as conversas de vizinhas por cima do muro, dos comentários que traziam as empregadas domésticas, os vendedores ambulantes, o quitandeiro, o padeiro, o leiteiro... Todo mundo ficava sabendo de tudo, porque o padre tinha o voto de silêncio sôbre o que ouvia no confessionário, mas as beatas não...
Um dia o pessoal que trabalhava na fábrica, que uma grande firma da capital tinha lá, voltou para casa com a notícia de que tinham que ir a Belzonte para uma reunião que ia haver na sexta-feira depois do expediente. Previam que seria uma reunião com jantar e tudo, de modo que cada um se meteu na sua melhor fatiota e lá se foram, num trem que passava às duas horas e chegava lá por volta das seis.
Na tal reunião, com jantar e tudo, foram anunciadas promoções para quase todos êles, e os que não foram promovidos ganharam significativos aumentos salariais. Foi um dia, ou melhor dizendo, uma noite de glória para todos. Lá pelas dez e meia, saindo da reunião-jantar e tendo bebido um pouco mais do que o costume, um deles sugeriu que fossem a algum lugar para comemorar, já que de qualquer maneira teriam que pernoitar por lá e só poderiam retornar no dia seguinte.
E assim saíram perambulando pelas ruas movimentadas até que toparam com um local alegre, com música, dança e, verificaram logo, companhias à vontade. A fome e a vontade de comer se juntaram imediatamente, caíram todos na gandaia sem pestanejar, e só foram se dar conta de que teriam que voltar para casa no dia seguinte, depois de terem tirado uma forra de muitos anos numa noite só.
O mais difícil para cada um deles foi descobrir aonde cada um havia ido parar, porque tinham vindo juntos e tinham que voltar juntos para não dar na vista. Logicamente a maioria perguntou logo à companheira ao lado onde estavam e onde estariam os demais, e assim foram se achando em vários hotelecos da vizinhança. Quando todos haviam sido encontrados, dirigiram-se à estação e pegaram o trem para casa. Durante a viagem, discutiram o assunto cautelosamente e concluiram que o mais prudente seria guardar o mais absoluto segredo, ninguém faria absolutamente nenhum comentário na cidade com quem quer que fosse.
A coisa deu certo por algum tempo, mas o Valtinho, que era solteiro e frequentava um bar para tomar umas cervejas aos sábados, acabou inventando de contar vantagem depois de umas e outras. A história do Valtinho num instante se espalhou e a mulherada começou a especular o quê teriam feito os outros, porque o Valtinho era solteiro mas os outros eram casados. As beatas na igreja apertaram a mãe do Valtinho, que por sua vêz extraiu do filho uma confissão completa. Confissão com dedo duro e tudo, tintim por tintim.
Foi um Deus nos acuda! A notícia se espalhou mais depressa do que fogo em rastilho de pólvora. Foi todo mundo apertando todo mundo na hora do jantar, todo mundo negando, mas alguns começaram a fraquejar tomados de remorso ou terror, e assim em poucos dias a cidade toda comentava que o pessoal da fábrica havia ido a Belzonte a aprontado a valer.
A mulherada se reunia no clube às quartas feiras para jogar bolão, uma espécie de boliche que nunca entendi bem, e naquela quarta feira nem jogaram: ficaram o tempo todo tramando um castigo, uma vingança, uma lição, seja lá o que fosse, ainda mais que várias delas haviam corrido à igreja consultar o padre e de lá voltaram bem estimuladas. Depois de muita lavação de roupa suja, acabaram combinando: fariam uma greve de dois meses! E ai daquele que fosse pêgo tentando escapar!
Depois de alguns dias a coisa começou a ficar quente, e depois de uma semana já estava em ponto de fervura. A turma começou a se reunir na hora do almoço, no fim do dia, e até durante o trabalho, em rodinhas de discussão acalorada, para tentar achar uma saída. Os que tinham alguma coisa a fazer fora da cidade eram logo desencorajados pelos demais: viajar, nem pensar! Vamos torcer para que a diretoria não chame ninguém até que as coisas se resolvam. E tome chá de imaginação para quebrar a resistência da mulherada. Mas nada! Elas estavam firmes como rochas!
A Jandira, numa pindaíba de dar dó com as suas garotas, teve uma idéia: quem sabe eu consiga fazer uns cobres abrindo umas mesas de jogo, diversificando o negócio. Quem sabe assim o pessoal crie corajem e venha até aqui, os que estiverem mais a perigo entrando e saindo pela porta dos fundos, e o Quinzão montando guarda na porta, para segurar quem vier tentar espionar.
Da idéia à ação foi um pulo. Os primeiros a começarem a aparecer foram os solteiros, mas logo os casados também começaram a descobrir como burlar a vigilância, embora sempre preocupados.
E, como de costume, a notícia logo começou a se espalhar, que a Jandira havia colocado umas mesas e o pessoal ia lá jogar e tomar umas biritas. Se as meninas entravam na dança também, ninguém podia garantir, mas...
A dúvida logo se instalou na cabeça de cada uma: cada vêz que o marido não estava à vista e não era horário de trabalho, pensavam logo se não estaria na casa da Jandira. Alguns saíam no sábado com a vara de pescar ou com a espingarda de chumbo para ir pescar ou caçar, como de costume, levavam o cachorro, lanche e tudo o mais, e tratavam de voltar com alguma coisa, pescado ou caçado, mas a dúvida, cruel dúvida, sempre existia.
Algumas mulheres, mais corajosas, resolveram enfrentar o diabo de frente: desconfiando, começaram a ir até a casa da Jandira, desafiando a má reputação do pedaço, para perguntar ao Quinzão se havia visto o marido por lá.
Um dos maiores frequentadores das mesas de jogo da Jandira ficou sendo o Seu Nestor, gerente de uma das seções da fábrica, que saía para pescar mas ia direto para lá, depois de combinar com um de seus subordinados a compra de parte do pescado que êste conseguisse trazer do rio até umas duas da tarde. O "Seu" Nestor era muito vivo, não deixava ponto sem nó nem fresta sem fechar. Logo no primeiro dia chamou o Quinzão, deu-lhe uma bela gorgeta que ia sempre se repetir, e instruiu: "Se a minha mulher aparecer perguntando por mim, ocê dimira."
O Quinzão embolsou a nota e foi para a portaria, como de costume. Nada aconteceu por vários dias, até que avistou a mulher do Seu Nestor vindo lá adiante em passo apertado e bufando como uma locomotiva. Lembrou-se da recomendação mas não lhe ocorreu o quê devia fazer. Correu lá dentro e perguntou: "Seu Nestor, se a sua mulher vier, o quê que é prá fazer mesmo?" "Ocê dimira, sô." "Dimira???..." "É! Ocê diz assim: magina!!!!"
E assim, cada mulher que chegava à porta da Jandira perguntando pelo marido, o Quinzão dizia: "Magina! Vi não!"
Parecia que o pessoal havia encontrado uma solução perfeita, daquele mato não saía coelho, e a mulherada voltou a se reunir para discutir nova estratégia.
A idéia surgiu como um ráio: fariam uma excursão de fim de semana, só as mulheres!
Combinaram que fariam todos os preparativos em segredo, só contariam aos maridos na véspera, para não dar tempo de reagirem.
E os preparativos começaram. As poucas lojas da cidade num instante começaram a vender pano, linha, sapato novo, bolsa nova e tudo mais, e as costureiras ficaram super atarefadas com as encomendas urgentes que receberam em grande número e ao mesmo tempo. Os maridos logo observaram pelas contas bancárias que havia algo no ar, ou melhor, não só no ar, porque a gastança estava meio grande mas êles não viam em quê e elas não diziam.
Será que o padre está arrancando dinheiro para reformar a igreja?, pensavam. Mas lá na igreja não havia qualquer sinal de obra ou pintura. Novamente o Seu Nestor foi quem teve a idéia que desfêz o mistério: foi até a loja de armarinhos do Messias, lá na esquina depois do bar do Manoel, e ficou sabendo que muitas mulheres haviam comprado pano, linhas e outras coisas nos últimos dias, aparentemente para fazer vestidos novos.
Nas rodinhas a turma começou a especular, sabendo do destino do dinheiro, o quê estaria tramando a mulherada.
"É isso, vão fazer uma festa surpresa!", disse um deles, e os outros concordaram. Mas quê festa? E quando? E onde? E porquê? No fim de semana descobririam, porque seria impossível esconder.
Mas não deu tempo: na sexta-feira, com todo mundo trabalhando, a mulherada apareceu em peso na estação e pegou o trem das duas para Belzonte. O pessoal chegou para jantar no fim do dia, e só encontrou a empregada e as crianças, mais o prato de comida requentado, porque a patroa havia ido para Belzonte. "Prá Belzonte? Ai, meu Deus!" E foi uma reação unânime: correram todos para a estação, para perguntar ao bilheteiro se tinha vendido passagem para a mulher ir a Belzonte. O chefe da estação foi logo dizendo que o trem havia ido meio superlotado naquele dia, porque a mulherada toda estava nele, e todas de vestido novo, parecia que iam a uma festa.
"Não tem outro trem? Temos que ir atraz!"
"Tem um que passa aqui às dez horas, mas é um mixto que vai parando, chega lá só de manhã cedo."
Pernas para que te quero: correram todos para casa, para tomar uma chuveirada, trocar de roupa, arrumar uma maletinha e voltar para esperar o trem das dez. Aboletaram-se nele de qualquer jeito, porque tinha só um vagão de passageiros, um "segundão" sujo de dar dó, e passaram uma noite de cão, cada um se perguntando o quê aquela danada estaria aprontando em Belzonte.
Só então, cabeceando de sono, um deles se lembrou de perguntar: "Aonde será que elas foram, lá em Belzonte?!" Pergunta crítica! Na cidadezinha deles era fácil saber, mas em Belzonte, não saberiam nem por onde começar. E, o que era ainda piór, não saberiam a quem perguntar.
Lá pelas sete da manhã o trem foi encostando na plataforma e os coitados desceram esbaforidos e sonados. Foram andando em direção à saída. E estavam na calçada discutindo para onde ir, se tomariam um táxi, ou vários táxis, quando o Seu Nestor se lembrou de que no caminho haviam visto um sujeito dormindo num banco da sala de espera. Vai ver que êle estava aqui ontem, pensou. Voltou lá e tentou acordá-lo, mas êle estava mais bêbado do que um gambá. Perda de tempo. Havia uma lanchonete, que àquela hora servia café a alguns viajantes, mas o pessoal mal tinha começado a trabalhar, ninguém tinha visto nada na tarde do dia anterior. Acabaram desistindo e se agruparam em táxis para percorrer a cidade, tentando dar "dicas" aos motoristas que permitissem descobrir onde estariam as suas "mais caras" metades.
Os taxistas divertiram-se à bessa com a história e com o dinheiro que ganharam rodando a manhã toda e boa parte da tarde, mas nada encontraram em lugar nenhum. E assim acabaram voltando à estação, cansados e frustrados. Sentaram-se nas mesas da tal lanchonete e começaram a pedir uns sanduíches, porque só então se deram conta de que ainda não tinham comido nada e estavam de estômago doendo.
Nisso o bêbado começou a acordar lentamente: levantou-se ainda meio cambaleante e foi indo em direção ao banheiro. Vendo o bêbado em pé, a turma teve instantaneamente a idéia coletiva de abordá-lo novamente. O coitado ficou atrapalhado, não entendendo nada: "Se não for logo eu faço na calça", ameaçou.
Deixaram-no ir, mas foram atráz e ficaram esperando até que êle se aliviasse e dispusesse a conversar. "Será que oceis podia judá com uma branquinha?"
Levaram-no para uma das mesas, pediram um café, pão, manteiga, e, claro, uma branquinha, que o bêbado, - já agora não tão bêbado, - traçou num gole antes de começar a comer o pão e a tomar o café. Com tanta gente fazendo pergunta ao mesmo tempo, o dito cujo parecia perdido no espaço. De repente exclamou: "Todo dia agora é isso: um dia é um bando de matuta, no outro uma turma de doido..."
"Quê bando de matutas?" perguntou o Seu Nestor, desconfiado. O bêbado olhou-o com olhos esgazeados, tomou mais um gole de café, mordeu o pão, deu umas mastigadas, e de novo o Seu Nestor perguntou" "Quê bando de matutas?"
"Umas que ficaram aí fazendo um barulho danado, não me deixavam dormir..."
"Quando foi isso?"
"Sei não... acho que foi ontem..."
"Ontem? E para onde elas foram????"
"Sei não... quando o barulho acabou eu consegui dormir e..."
O grupo ficou encafifado. E agora? Será que eram elas mesmo? Nenhum deles considerava a própria mulher uma matuta, mas o bêbado... E ali ficaram, discutindo o assunto um bocado de tempo, até que, sem chegar a conclusão nenhuma, um deles ponderou: "E se elas voltarem para lá e não nos encontrarem? O quê vamos fazer? Quê desculpa vamos dar?"
Precisavam de uma estratégia urgente, e concluiram que o remédio seria retornar, antes que a coisa se tornasse ainda mais complicada: na bilheteria ficaram sabendo que um trem de passageiros havia partido às 7 horas, e que havia um outro "segundão" mixto saindo às 9. Esse chegaria lá de madrugada. Quê remédio: tomaram o "segundão" e passaram mais uma noite insones.
De madrugada, cansados e famintos, cada um foi para casa e a cena foi mais ou menos a mesma: ao entrar no quarto, a luz se acendeu e a mulher perguntou: "Onde é que você estava desde ontem, e até esta hora?"
Confusos, alguns tentaram contra-atacar perguntando aonde "ela" tinha ido, outros balbuciavam desculpas confusas, e as mulheres novamente se fecharam, nenhuma disse uma única palavra mais.
Até hoje o pessoal não sabe o quê se passou, se elas de fato foram a Belzonte, o quê fizeram ou deixaram de fazer lá, se eram mesmo as matutas mencionadas pelo bêbado da estação.
Não mais falaram no assunto, para não piorar as coisas, e as mulheres também não falaram mais no assunto e terminaram a greve. Só ficou, na cabeça de cada um, a tal de dúvida...