Observador Isento (Unbiased Observer)

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Wednesday, November 28, 2007

A pescaria e a dentadura

Luiz A. Góes
O primeiro doutor de minha família de que me lembro, fora o meu tio veterinário, que ninguém chamava de doutor, foi um tio pelo lado materno que queria muito ser engenheiro mas acabou sendo dentista.
Quando se formou, apareceu na casa de meu avô, lá em Santa Catarina, no final do ano em verdadeiro estado de graça, com seu anél reluzente e muitas proezas para contar. Foi logo tratando de mostrar à família que não era de brincadeira e começou a mostrar serviço: sem perda de tempo foi tirando moldes das bocas de todos os parentes que usavam dentadura e produziu em pouco tempo uma penca delas, de modo que toda a turma entrou nas festas de sorriso novo. Aproveitou para iniciar um outro tio na profissão de protético, ensinando-lhe os primeiros passos na mistura de massas, pós e líquidos.
Logo depois das festas começou a pensar em onde iria se estabelecer. Uma tia que morava em outra cidade lá do interior assegurou que onde morava precisavam muito de um dentista, porque não havia nenhum por lá. Foi-se para lá o meu tio dentista, levando com êle o irmão aprendiz de protético. Lá progrediu, casou-se com a filha de um dos mais importantes fazendeiros da área e se tornou êle mesmo fazendeiro. Mais alguns anos, e já com uma penca de filhos para educar, acabou se mudando para Curitiba em busca de escolas melhores e mais opções. A essa altura já tinham aparecido outros dentistas lá na cidadezinha, de modo que o tio protético deixou-se ficar, não o acompanhando na nova mudança.
Quando o encontrei de novo, alguns anos depois de sua triunfal volta para casa com canudo e anél, êle tinha passado a contar outro tipo de história, - ou seriam estórias? – que o convívio com o pessoal da colônia, que é como chamavam aquelas áreas habitadas por sitiantes em sua maioria descendentes de imigrantes, tinha lhe ensinado a apreciar.
E assim fiquei sabendo da história, - ou melhor, da estória, - da primeira dentadura que colocou na boca de um dos habitantes da tal cidadezinha para onde foi quando recém-formado.
O sujeito era conhecido como "Seu Buca", e era famoso por ter os dentes da frente completamente estragados. Mas nem por isso deixava de dar boas gargalhadas e escancarar a boca a cada passo. O "Seu Buca" era dono de um armazém de secos e molhados, muito conhecido de todos, de modo que não podia jamais passar despercebido.
Ao ouvir falar que havia um dentista na cidade, foi logo lá para consertar os dentes, mas meu tio, depois de examiná-lo, teve que dizer que sentia muito mas o caso dele era para arrancar tudo e colocar uma dentadura.
O "Seu Buca" exitou, pediu tempo para pensar, e algumas semanas mais tarde voltou cheio de coragem: êle tinha se apavorado com a idéia de arrancar os dentes, porque jamais tinha se aproximado de uma cadeira de dentista até então.
E assim, depois de alguns dias mais, o "Seu Buca" começou a exibir a sua dentadura reluzente, que chamava a atenção de todos por causa da lembrança de seus dentes estragados. Ficou sendo um verdadeiro cartão de visitas do novo dentista, que logo em seguida viu formar-se em sua sala de espera, todos os dias, uma fila interminável de gente querendo uma dentadura "que nem a do Seu Buca", a ponto de ter dificuldade para convercer muita gente de que o que precisavam eram algumas obturações e incrustações, mais uma boa limpeza, em lugar de dentadura.
Pois o impossível aconteceu: um belo dia, uma segunda-feira, o "Seu Buca" ficou o tempo todo de boca fechada, quase sem falar e muito menos rir, quê diria soltar as célebres gargalhadas. E assim ficou por vários dias, até que começou um zumzum porque alguém aventou a hipótese de ter acontecido alguma coisa com a dentadura dele.
Mas passadas umas duas semanas o "Seu Buca" estava de novo sorridente e exibindo orgulhosamente a sua dentadura reluzente. Foi aí que meu tio resolveu dar uma passada na "venda" do "Seu Buca" para tentar saber o quê tinha acontecido.
Depois de muitos subterfúgios, o "Seu Buca" acabou confessando que tinha perdido a dentadura. Aquilo era incrível: era a primeira vez que alguém dizia ter perdido a dentadura de que se ouvia falar!
Mas tinha sido aquilo mesmo, e o "Seu Buca" por fim contou que não conseguia se lembrar de onde a poderia ter perdido, porque costumava tirá-la de vez em quando para descansar, quando não havia ninguém por perto. Meu tio foi ficando cada vez mais atônito com aquelas revelações, e perguntou onde, afinal, o "Seu Buca" tinha perdido, - e reencontrado, - a sua dentadura.
O "Seu Buca" disse que deve ter sido na beira do rio, no domingo, quando foi pescar, costume que cultivava havia muitos anos. Sentado lá por várias horas com a vara de pescar na mão e sem ninguém com quem conversar, êle deve ter tirado a dentadura e colocado ao lado de suas tralhas de pesca. Como a esqueceu lá é que foi incapaz de explicar.
E como tinha encontrado a dentadura perdida? Ah, bem: quem a encontrou não foi êle, não! Foi um sitiante grandalhão mais conhecido por "Pezinho", porque tinha um pé de quase um metro, o maiór de toda a região, nunca encontrava um par de botinas que lhe servisse para comprar.
O "Pezinho" tinha aparecido no boteco do "Seu Buca" e foi logo dizendo que tinha vindo trazer a dentadura que êle tinha perdido. O "Seu Buca" tinha escondido o fato de todo mundo e ficou intrigado com a afirmação do "Pezinho". Mas ficou firme, vendo que se tratava mesmo de sua dentadura, e apenas perguntou como o "Pezinho" a havia encontrado.
O "Pezinho" disse que foi pescar e percebeu que um peixe tinha mordido a isca, mas quando puxou o que veio foi a dentadura, que tinha caido na água! Eita "Pezinho" inventador de estória!
Mais alguns segundos e o "Seu Buca" teve que perguntar: "E como você sabia que era minha?"
"É porque o pessoá lá da colonia num parava de dizê: ocê já viu que dentuça briante que o "Seu Buca" ponhô?"